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quinta-feira, 11 de julho de 2013

DONA NADICA


 Cansada de desacordos, Srª. Nadica decide esquivar-se de si mesma e enfrentar a vida pelo avesso.
  Ao primeiro impacto, agora com os olhares abertos, não sabia ao certo o que via. Tudo lhe parecia opaco, longínquo... Naturalmente foi se sentido oblíquoitada, borrada por aqueles excessos de iluminação. Os olhos pareciam descrer naquelas exterioridades. 
  No segundo momento – acostumando-se –, já conseguia aceitar que aquelas mãos eram suas. Resolveu então apalpar-se e, sim, teve a impressão de ir dando à luz a si mesma. 
  O dia já ia pedindo pernoite e suas pálpebras, silenciosas, caindo pelas beiradas do mundo. O sono vinha chegando devagarzinho, devagarzinhando e desiluminando a Terra por metade. Acordada para fora, Dona Nadica só adoecia. Aos poucos, abriam-se outros olhos, foi se acalmando como se esperasse os devidos co-lírios – medicação necessária para se ver melhor nas flores... 
  Os horizontes foram crescendo e outras cores faceirando às distâncias. Mas tudo aquilo não mais importava. Nadica nunca mais teve coragem de contemplar nenhum dia. Ficou ali, acendendo-se sozinha... 
  Dona Nadica morreu assim: muito antes de ter nascido outro daqueles sóis lá de fora. E é tudo o que se sabe dessa mulher, Dona Nadica de Nada. 

sábado, 22 de junho de 2013

LEITURA: UMA CONDIÇÃO EXISTENCIAL

Quando falamos em leitura sempre nos vêm à mente aqueles velhos e surrados dilemas: “Mas eu não gosto de ler. Não tenho o hábito...”. Sim, isso tudo compreendemos. Contudo, esse tal de ‘não gostar’ pode até ser intragável a alguns paladares menos apurados, mas afirmar com tanta convicção que não é capaz de ler, meus amigos, é o mesmo que considerar-se, paradoxalmente, incapacitado de existir ou sentir nem que seja uma leve brisa ao lhe desgrenhar um pouco os cabelos, exatamente como vemos em funerais antes do corpo descer e esperar transformarem-se em poeira os fios do cabelo do novo morto.  
Acreditem, senhores, a leitura independe de nossas vontades, pois temos aparelhos ‘ledores’ e isso já vem de fábrica, vem de dentro, vem conosco. Eles são vivos, servem para sentir a vida, mas a nossa só é capaz de existir se formos capazes de sentir e deixar-se sentir pelas demais. Sim, falamos de nossos sentidos, todos eles, sem faltas. Falamos do tato, do olfato, do paladar, da visão e de alguns outros sensores que vão brotando com o tempo e com experimentações nossas para com as escritas feitas pelas anotações do mundo e nas páginas de nós mesmos.  

A leitura escrita, contrariando o que muitos tendem a acreditar, não define o processo de ler, pelo menos não integralmente. Enganam-se os que creem nisso, pois decodificar códigos gráficos (a escrita tal como a conhecemos no papel) é apenas uma de nossas muitas capacidades leitoras. Digo mais, esta é uma das poucas que não nascem conosco, de fato precisamos aprendê-la, jamais nascerá prontinha, mas uma vez apreendida, ela tende a crescer dentro de todos nós e apurar e confundir nossos outros veículos ‘ledores’. Sim, elas podem, inclusive, nos levar até a mais difícil e formidável de todas elas: a leitura de nós mesmos.

sábado, 8 de junho de 2013

A MULHER QUE CONVERSAVA COM OS VENTOS

“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando.” Assim costumava dizer Ana Terra. Eis o vento, o tempo, O Tempo e o Vento... E aproveitando esta brisa, falemos então dela, de Ana, a Ana de todos os ventos.
Quem um dia não a imaginou real, perto, tão perto que chegou a reconhecê-la em um familiar distante? Já ouvi pessoas afirmarem ter sido Ana uma pessoa existente, ou no mínimo, que já existiu. Não os censuro, pois ela viveu em mim também. Viveu enquanto relia a obra (‘O Continente’, o primeiro livro da trilogia ‘O Tempo e o Vento’, de Erico Veríssimo). Sim, a personagem parida por Erico se perdeu em mim, foi ganhando formas novas sob minha voz, minhas imagens, meu conhecimento de mundo desnudado pela leitura.
Ouviram? Está ventando, algo importante vai acontecer... Então explico o que me aconteceu: o ventou zuniu um tempo novo aqui em casa, minhas leituras ganharam outra leitora. De Veríssimo para mim, de mim para minha filha. Sim, ela anda fazendo a velha cidadezinha de Santa Fé reviver dentro de si. Como é bom ouvir dela o fascínio das vozearias que brotam e vão reconstruindo o que há tempos já haviam ocorrido em mim... Desse modo, esses ventos já sopram além dos tempos, uma vez que sempre é hora de visitá-lo, basta dispor-se a sonhar e entregar sua fome aos apetites da obra.

Como sempre, não darei o resumo, muito menos tomarei posturas didáticas por aqui. A Literatura, assim como toda expressão artística, não está para moralizar ou te auxiliar em caminhos “certos” da vida, ela existe para inquietar. Aqui em casa reinventamos as nossas sob duas perspectivas: uma que refiz e outra refeita por minha filhota. Ler é isso: um caminho para pluralizar verdades. Pluralizar caminhos onde sopram ventos e onde se perdem todos os tempos... 

sábado, 1 de junho de 2013

SANDUÍCHES DE PAPEL

Não pense você que pode aprisionar um livro. Livros são livres. Eles não te pertencem. Não há motivos para deixá-los empoeirar. Contudo, sendo um pouco realista, não podemos também jogá-los desamparados de volta ao mundo. Precisamos saber para quem confiá-los. Costumo dizer que são eles quem escolhem suas novas casas, seus novos amigos, suas novas completudes. Quando um livro é deixado à sorte, esquecido num canto, já está na hora de ir. Livros empoeirados são como almas no limbo. Almas lutando para voltar novamente a ter um corpo, uma voz, uma vida nova. Não os aprisionemos, pois se o fizermos, mundos podem nunca acontecer, assim como a verdade pode nunca ter a chance de se pluralizar.  
Há quem os use para decoração. Livros não são bons nisso. Fechados não passam de sanduiches recheados com muito papel. Mas sabem o que é mais engraçado e não menos interessante em toda essa desmedida estética na visão vazia de uma obra fechada? Só quando abertas são capazes de matar a fome de nós mesmos, de outros de nossos sentidos. Fomes de vozes que nem sabíamos que tínhamos. Fome daquela velha matéria-prima da qual se fazem os sonhos: que é a imaginação. Portanto, penso que ler é o exercício de imaginar, de treinar para o sonho, de inquietar, de reinventar e reinventar-se. Livros não servem para decorar ambientes. Livros só existem quando deixamos que nos leia, quando nos abrimos para eles, sim, muito antes de abri-los. Esquecê-los é esquecer uma parte que poderia ser sua.
Para encerrar, completo a reflexão com o pensamento do colega e amigo Professor Irineu Di Mario, logo após ter lido a primeira parte desse escrito/desabafo. Disse ele:

“Esse é um dos motivos legais de comprar em ‘sebos’, alí nos deparamos com obras que já pertenceram a outras pessoas e casas, enfim.” 

domingo, 26 de maio de 2013

“A GUERRA DOS PALHAÇOS”, DE MIA COUTO: UMA LEITURA

Dois palhaços discutiam. Entre um passante e outro, os ritmos começavam a desacelerar. Uns paravam para assistir a quebra da rotina. Outros continuavam a ‘rotinar’. Mas o fato é que tudo ia esquentando e se ‘empovoando’. A conversa, inclusive, começou a tomar falsas formas pelos ares. Golpes iam sendo desferidos de maneira que não encontrassem vítimas, só zunzunares. Dia-a-dia, os homens pintados pintavam também os transeuntes, não de forma literal, rápida, mas gradual, moral. Inclusive – lá pelo quinto dia – um dos palhaços resolveu munir-se de um pau. Então, em um cênico golpe ‘mentirosoferido’, o outro se abaixou e acabou acertando um espectador. Este, claro, foi à forra e acertou outro que enfureceu mais outro e o mundo se desfez. Um mês, e todos haviam morrido, menos os palhaços que foram procurar outra cidade para “empalhaçar”.
Um espaço público. Em meio a tudo, dois palhaços. Mas o que estaria errado por alí? Justamente eles (os palhaços). Como? É porque discutiam ‘ninharices’ e de forma tão séria para duas figuras como aquelas? Ainda mais em um ambiente de trânsito intenso onde ‘transeuntavam’ pessoas ‘normais’. Obviamente temos uma inquietação que desenrola o novelo das ironias por aqui, mas o fato é que isso se perpassou por dias até que, em um átimo, em um único fio puxado, todos acabaram envolvidos e fora de seus paradigmas naturais de passantes indiferentes. A rotina se quebrou.
Enfim, esse conto é o décimo nono da obra “Estórias abensonhadas”, de Mia Couto. Inquietante é a palavra que define bem essa “guerra dos palhaços”.

Fica a dica.

SOBRE UM CONTO, O TERCEIRO DAS PRIMEIRAS ESTÓRIAS DE ROSA

Não devemos ler Guimarães Rosa. Pelo menos não em voz alta. Devemos nos manter “lúcidos”, pois saibam: Rosa nos consome em encantamentos quando o ouvimos em nós, com nossas vozes. Emprestar vozes a Rosa é como embriagar-se em bebidas de adegas particulares e perdidas em alguns de nossos sótãos interiores: locais de vinhos raros, finos e que, muitas vezes, nem mesmo nós sabíamos que tínhamos alí, tão perto...
Eis uma das estórias desse Baco que está sempre pronto a nos embebedar. Querendo se achar, perca-se com ele. Beba...
“Sorôco, sua mãe, sua filha”. O conto – o terceiro das Primeiras estórias (1988) –, de Guimarães Rosa, nos conta a história de Sorôco. Homem quieto, sério e triste, pois a narrativa nos leva junto com ele (que era também viúvo) a ter que acompanhar sua única filha e a mãe idosa até a porta de seus destinos: a um carro de ferro que às levaria ao hospício. Ao entrar no trem, olhando para baixo, a criança canta. Em seguida a mãe/avó embarca. Antes sempre calada, agora segue na mesma canção da neta. O homem, cabisbaixo, contempla as duas partindo, talvez, para nunca mais. O trem parte. E ele, Sorôco, fica na mesma toada, na mesma canção daquelas duas, suas duas mulheres 'enloucadas'. Os passantes da estação, percebendo tudo e em comunhão com aquele pai/filho tristonho, se olham e vão cantando em um único coro atrás de Sorôco. E todos produzem a mesma canção solidária. 
Mesmo tendo uma descrição propositalmente detalhada de algumas ações e apresentações na obra, o movimento se faz em toda ela, inclusive no final, pois acabamos não conseguindo encerrar o conto, ficamos absorvidos olhando por cima do livro e seguindo tristes no mesmo coro atrás de Sorôco.

Advertência: não reproduza o ritmo desse conto, pois é possível que fique preso nele por horas perdidas a olhar para o horizonte. Aconteceu comigo. 

NOTAS DO SUBSOLO, UMA LEITURA

Através de algumas vozes que lembram monólogos – diríamos – intimistas, Dostoiévski, em suas “Notas do Subsolo”, nos proporciona questionamentos que vão muito além do que queremos ouvir. Ele nos faz existir sob suas ideias por saber bem arranjar-se sob as nossas e sob todos os tempos. Indigesto, no sentido sofrível da percepção de nossas próprias falhas, Fiódor Dostoiévski (1821- 1881) vai sendo provocativo em cada página virada.
Assim, saindo do campo demagógico de dizer só o que agrada, o autor liberta-se em sua ficção para dizer o que a neblina da sociedade tenta até hoje esconder pela multidão: o indivíduo, o sujeito falho e mesclado de posturas intermitentes de moral e amoralidades. Mesmo assim, como um leitor poderoso da alma humana, ele consegue ir além. Consegue chegar até nossos dias, nossas nações, vai até nossas casas e se farta pelo empréstimo de nossas vozes, já que hoje sua pátria seria a Rússia, mesmo que os espaços transgridam – como dissemos – aos tempos e às geografias. Sim, atestamos: ele ainda permanece aqui, basta abrirmos o livro. Nessa obra (‘Notas do Subsolo’), O autor ultrapassa tudo isso, claro, pois vê o humano nas linhas de suas atitudes e, como, obviamente, fazia parte dessa humanidade, desalinhou-se nas linhas de sua escrita para deflagrar-se e fazer com que percebamos algumas das nossas hipocrisias sociais. É certo, Dostoiévski está aqui, porque todos somos objetos de seus olhares apurados, mesmo antes de termos nascido. Uma previsão do que nos tornamos/tornaremos. Sim, somos homens e homens podem ser lidos.
Quero lembrar também que, entre muitas obras, esta da qual falamos, foi confiada a mim por um amigo. Ele insistia em dizer tratar-se de um presente, mas considero o ato de dar um Dostoiévsky mais do que isso, considero uma ponte que pode ligar outros mundos, inclusive, fabricar novos.
Ainda não esqueço à advertência que fez o colega e amigo Prof. Rodrigo Bartz ao legar-me à obra. Reproduzo:

“Se estiver deprimido, ele pode te deprimir ainda mais ao fazer de ti o próprio inferno existencial. Sem solo, ficas tu sofrendo no subsolo das reflexões dostoiévskianas.”       

sexta-feira, 8 de março de 2013

DIA DA MULHER...


   
Às vezes nos perguntamos se realmente precisamos saber disso ou daquilo. Respostas sempre surgem, mas elas só vêm inteiramente para o curioso que teima em sempre ir além da simples e preguiçosa indiferença. No entanto, o elemento insiste em permanecer no mundo e, mesmo se não o soubermos em sua essência, ele continuará existindo com toda a sua força. Respostas? Essas devem ser perseguidas e entendidas em seu cerne, não através de invenções mirabolantes e românticas sobre determinados temas, mas na busca séria e comprometida de verdades que serão ponderadas com as suas. Ao construirmos uma casa, por exemplo, pensamos primeiro em seu alicerce. Fazemos isso para nos certificarmos de que, sobre essa estrutura, paredes firmes sejam levantadas... Assim é também conosco.
      Pensando em nossas construções, alicercemos agora o nosso entendimento, falemos das mulheres, dos homens e de nossas casas que têm vontades de serem janelas só para espiar o mundo livre de qualquer prisão social cujas grades são os gêneros.
Bem! Dia internacional da mulher. O difícil é sabermos quais mulheres, já que são muitas dentro de cada uma e infinitas quando suas fronteiras se mestiçam em uma nação inteira delas e também deles. Sim, todos somos mulheres. Todos somos homens. Falo das “mwandias”, (termo que significa “canoa” em uma das aproximadas 25 línguas que andam vivas e bem falantes por Moçambique, na África), essas que trafegam dia-a-dia de uma margem à outra do rio (tempo); entre um ventre “mar-terno” à terra “mãe-terna”; entre a quentura do seio à ‘friavileza’ do mundo; entre um rio masculino à um “la mer” (mar, em francês) feminino. Pensemos, não em um dia do homem ou da mulher, pensemos em chegarmos juntos há uma terceira margem: a da igualdade.    
Para encerrar, ‘desacordando’ dessas meias verdades sobre o dia, comemoremos, esqueçamos as utopias aqui deste texto. Contudo, se for possível, vamos refletindo ao menos sobre o que dá dimensão ao feminino. Pois, como diria Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher. Torna-se mulher.” O que ultrapassa – acredito – qualquer tipo de gênero (homem, mulher) que “desgenera” e separa o que na verdade precisa é de construção.