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domingo, 30 de agosto de 2015

NONADA, DIZ O ARTISTA QUANDO VELHO...

Queria ter sido parido para dentro de outro lugar. Para alguma lonjura mais próxima dos ‘foras’ de ‘quandoleio’.

Dia desses ganhei de presente um livro de contos. Li o primeiro. Reli. Deixei com que me lesse. Refestelamo-nos um para o outro. Enfim, acompanhamos (o conto e eu) o que aquele tempinho de troca nos quis informar.
Os dedos. Pensei logo nos olhos daqueles dedos que se ‘musicoescreveram’ por ali. Eles não me saiam da cabeça. Entendo, já que a escrita é a incapacidade de ver o mundo sem eles, sem suas pontas. Deve ser como sentir a vida em braile enquanto dedilham (para ela) algumas composições pouco mais faceiras, tal como um parto de imagens trigêmeas: a do ler; do ler-se; e a do ‘ser-lido’.
Sim, conheço o dono daqueles “telequeteques” de máquina de escrever. Conversávamos muito durante os intervalos do Curso de Mestrado, lá da Unisc – ele foi meu professor. Para fora dos silêncios dos dedos, curiosamente, representava um ser sorridente e de voz mansa. Adorava falar da terra, da vida simples que mantinha paralela a de ‘docentescritor’. Também sempre deixou claro o amor que nutria por Rosa, por João Guimarães Rosa, o autor – e de tanto folhar aquelas pétalas, seus dedos acabaram prendendo alguns daqueles perfumes. Leia-o e sentirá.
Sei que o leitor deve estar querendo saber de quem são os dedos, porém não sei se devo contar, percebo que temos um pouco de dificuldade em aceitar os nossos, os nossos autores locais. Todos só se deram ao trabalho de ler Lya Luft, por exemplo, somente depois de já ter sido lida e consagrada para fora daqui, para outras distâncias. Quando esteve ao nosso alcance (ela é santa-cruzense) estávamos em outros cantos, dentro de algum livro que nem lembramos mais, de um best seller talvez esquecido. O que me deixa um pouco apático em relação a este “subestimar-as-nossas-letras”. Bom, vou dizer, não vou negar a informação a quem gastou seu tempo até aqui. O nome é Sérgio Schaefer. Pronto, falei.
Pois então. Poetas, professores e escritores (de um modo geral) carregam a mesma linha, o mesmo fio de Ariadne. Por hora são amados (quando alguma alma mais sensível resolve lê-los); por outra, na maior parte do tempo, esquecidos. Mas o que move as asas desses nobres não é o vento, não é o céu. O que move é a vontade de levar todo mundo junto – mesmo sem poder. Então, esperançosos, ficam pesados e resolvem andar, tal como albatrozes caminhando pateticamente sobre o convés de algum navio. No chão se tornam instrutores de passarinhos. E como é bonito quando algum deles alça voo, quando alguém resolve tomar emprestadas algumas de suas vozes para voar e cantar, eis o espetáculo que faz existir o céu.
Mas nonada, diz o artista quando velho. Ele só está escrevendo, pintando, ensinando (vozes escuras para ouvidos não muito claros). Contudo, quando morre, ganha alguns dias de fama, para só então receber a devida atenção: daí existe por um tempinho, existência de fumaça que se dissipa... A não ser que tenha um bom agente, um com bastante dinheiro e que possa fazer com que seus “nonadas” se transformem em muito mais.
Lya Luft teve sorte, sorte que nem todo o artista tem. Não é nada. Nonada, não...   

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

MARGINAIS DA ‘GUERRAIZ’...

Quando esquecemos um espelho de frente para outro, eis que temos dois abismos – infinitas repetições de labirintos que se devoram o dia inteiro.

A situação do magistério sempre andou pelas margens. Margens de um rio que viaja torto e que vai causando erosão nessas beiradas que segura a correria da vida. Estas águas (as da vida) são importantes – ninguém pode negar – são elas que molham a História, fazendo com que cada um de nós maruje nesta única via de navegação. O problema é que não há tráfego sem rota. Não há um “chegar lá” sem as marginais que seguram as curvas para que possamos passar, para que o rio possa continuar, já que, ao ter que seguir, também causa destruição.  
Quero dizer que os professores são como raízes bem firmes e que não permitem que a rota se acabe pela própria força em que cruzamos o mundo. Corrida perdida naquela ânsia que vai corroendo ao passar. Eles (os professores) são os que mantêm este curso, o trânsito que nos leva aos portos que precisamos atracar. Marginais? Pode ser. Toda margem precisa ser conservada firme para que a terra não condene a passagem ao erodir. Firmeza que anda se dissipando em um fenômeno chamado ‘guerra de raiz’, epidemia perigosa na qual uma sufoca a outra ao tramarem-se.
Como podemos perceber, temos dois perigos: a do rio que passa nervoso diante de nós; mais a doença que chamarei aqui de “guerraiz”. Situação confusa e que prossegue cheia de razões. Razões tão ‘desrazoadas’ a ponto de deixar muitas raízes doentes e fracas para segurarem, junto com as outras, a força da natureza e daquela correnteza que nos empurra a vida. Se as próprias margens mantêm marginais suas aliadas, o que dirá da ansiedade que tanto nos exige o mundo do “quero passar”?
Pois é. Cada um de nós, professores, é como uma margem cheia de curvas que quer, sozinha, dar rumo ao rio. Só que desse modo ele não encontra rumo.  É preciso de um outro lado para conter a força das águas, pois não há corrente sem as duas partes, não há vazão.
Deixemos de vaidades. A vaidade é uma máscara arquitetada para o lado de dentro do rosto. Ela é tão inútil quanto ridícula, uma vez que deixa os lábios à deriva, vulneráveis para quem quiser ler: este é o pecado favorito do mais íntimo de nossos demônios. É o que nos deixa sozinhos e enfraquece nossos sonhos. Uma árvore na barranca não tem profundidade suficiente para segurar a erosão. É necessário que se interrompa a ‘guerraiz’ para que possamos, sim, potencializar o que (a)segura o futuro. 

terça-feira, 25 de agosto de 2015

ENEIDA: UMA BELEZA DE NOME

“Navegar é preciso; viver não é preciso.” – pelo menos não no sentido de precisão.
(Fernando Pessoa).

Há um tempinho, conversei com uma senhora. O motivo que ‘enlenhou’ o fogo de minha curiosidade foi o nome que carregava. Chamava-se Eneida. “Bem legal!” – pensei. Então, faceiro por ter encontrado algo de dentro, mas tão fora daqueles mundos quietinhos que as palavras escondem, logo questionei: “Que bonito seu nome. Sabe o que significa? O motivo?” Não, ela não sabia. Tratava-se de uma pessoa simples (lembrando que simples não quer dizer simplória). Daí – meio desajeitado – tentei costurar uma explicação pouco mais clara para tanta ‘boniteza’. Comecei falando das Epopeias de Homero. Em seguida passeei pelas Tragédias Gregas para ver se afinava algum entendimento. Até, finalmente, chegar ao clássico de Virgílio, a, também, epopeia “Eneida”. “Meu nome é uma tragédia!” – nem titubeou em protestar. “Capaz! Seu nome vem de um livro bem bonito.” “Bom!” – raciocinei – “Talvez seus pais tivessem achado ele só bonito mesmo, ou, quem sabe, realmente tinham um propósito para o batismo. Ninguém pode saber, creio que não existam mais fontes que matem as sedes desses questionamentos.” No entanto, percebi minha inconveniência e, claro, mudei o rumo da prosa. Afinal, quem faz o nome é o vivente. A vida não é como a arte, nela nem tudo precisa ter razão de ser, apenas precisa ser.
Sorte que nem cogitei que o autor que escreveu a “Eneida” orientou Dante pelo inferno. Isso na literatura, óbvio. Contudo, – confesso – como seria difícil dissuadi-la dessa ideia pouco mais perigosa...  
Mais uma lição aprendida. Apesar de meu nome não significar nada, achei um tudo para engordar esta pouca razão em ter que carregá-lo. Senti-me mais leve por encontrar o desnível da existência. “Droga, Dilso! Viver não é preciso. Nem tudo se amarra aqui fora. As amarras são justamente as cordas que te amarram ao tentar tramar, engendrar sentidos.” Percebi meu próprio espanto, já que sempre pensei nos nomes para alinhar a vida – e a vida não se alinha, a vida se vive, não se ancora em coisa alguma.
Enfim, não nego, achei o nome bonito e de muito bom gosto. Tive que escrever. Temo a ideia de que elementos assim se percam. O que me faz recordar de uma entrevista dada ao “Globo Rural” a respeito da produção de cacau na Bahia. Acreditem: o entrevistado carregava o sobrenome de Badaró (personagem da obra “Terra do sem-fim”).  Jorge Amado, seu safadinho...

sábado, 22 de agosto de 2015

ESTÓRIAS QUE NOS PEDEM UNS CEM ANOS DE SOLIDÃO...

Vejo as paisagens sonhadas com a mesma clareza com que fito as reais.
                                                                                   (Fernando Pessoa)

Para existir só precisava de um lampião, um pouco de querosene e a imaginação refestelada de uma criança curiosa. Era assim que meu avô paterno viveu boa parte de sua vida. Escuro? Não, as vozes eram bem claras naquele tempo. Tanto que sempre que o visitava percebia o espaço enchendo-se com uma conversa levemente grave e moderada. Ouvi muitas histórias se iluminar por ali. O encanto estava justinho na prosa e nos medos engordados pelos escuros a nossa volta. Ouvi cada lenda de arrepiar. Confiava (penso até que acreditava mesmo) na veracidade de suas próprias memórias inventadas.
O professor Fernando – assim o conheciam naquele lugar – era dotado de um poder incrível de imaginar. Bom, ele era um contador de histórias, um marujo de seus próprios mares. Dispensava tudo, menos a presença de ouvidos. Não pretendo ser romântico aqui neste texto, mas creio que amava ganhar a imaginação das pessoas. Quem sabe não poderia ser lembrado pelo apelido de “professor Fernando Pessoa”? Penso ser impossível. Ninguém conhecia o poeta por aquelas bandas, uma vez que os escuros não impediam somente a luz ambiente, também desligava o mundo dos mundos que vagamundeavam para fora da localidade, quem dirá do além-mar. Contudo, ardiloso leitor do mundo e de alguns livros, pôs o nome de um dos filhos de Paulo Sabino. Paulo, por razões religiosas; e Sabino para homenagear o escritor que admirava: o Fernando Sabino. Fernando já tinha, fez-se o Sabino. Digo isso só para provar que em suas veias corriam, também, literatura.
Volta e meia, enquanto estamos costurando as prosas pela cuia de chimarrão, meu pai ainda recorda de alguma coisa. Há sempre um cantinho faceiro que se ilumina nessa escuridão toda a que chamamos modernidade. Mesmo com a televisão ligada, por alguns momentos a ignoramos e sempre vem à tona um cochicho de vozearia: “Dormia ouvindo teu avô cantando esta música... ‘encosta tua cabecinha no um ombro e chora...”.
Pois então! Todas estas imagens me retornaram – preciso dizer – por conta de José Arcádio. Ando relendo o “Cem anos de Solidão”, de García Márquez. E, assim como na obra, penso que o gelo também faria sucesso nos tempos do velho Professor Fernando, tal como fez com os Buendía, não menosprezando sua inteligência, claro, mas pensando sobre aqueles lugares escuros e pelos quais, hoje, são como a novidade de um ímã trazido por ciganos a certa civilização que se esqueceu de como conversar baixinho, cara a cara... Quando, em meio a tanta “eletricidade”, um livro bastou para acender novamente aquele farol. Aquelas estórias que carregavam um cheiro forte de querosene e saudades.
Eu tinha uns seis anos de idade quando o lampião se apagou... e no escuro, solidão. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

ESCREVER É SAIR PARA DENTRO DE SI MESMO...

Quem escreve costura vozes, amarra imagens e tece com elas uma grande coberta que nos (des)cobre.

As palavras nos sondam, nos trazem para fora, nos expõem e nos desarmam. Tudo nos escapa. Nada sabe ser silêncio, tudo se vai – mesmo quando não queremos que vá. As palavras nos tornaram incompetentes para existir: elas é que nos existem. São anjos atletas, usam as próprias auréolas para treinar arremessos com nossas cabeças. Nenhuma deve ficar presa. Contidas, vão se tornando vozes que te acompanharão até os infernos. Quanto mais demorar a libertá-las, mais forte ficarão quando saírem – cedo ou tarde elas sempre saem, viram monstros. É certo, uns possuem o dom (mesmo que não acreditemos em dons) de organizar todos os sons em cores; outros, menos populares, em silêncios. Acho que pertencemos ao último. Por isso escrevemos, mesmo sabendo que cada palavra precisa ganhar tom em alguma voz, mesmo que se perca pelos cantos.
Quando escrever? Ora! Sempre começamos na hora certa, porque a hora começa agora, não deixa cauda, não mostra fim. Os relógios não sabem de nada. Os tempos, para fora deles, estão sempre prontos para novas multidões, para crescer. O mundo não diminui quando crescemos. Ele encolhe quando a poesia (que é elástica) cansa sua borracha e dá lugar à rotina, que, por sua vez, aperta nossas crianças. Sim, a escrita é que mantém organizadas as vozes de nossos pensamentos. A caneta deve ser como uma artéria. Quando o coração bombeia, suas tintas nos (ex)pulsam para o papel.
 Claro que nem sempre somos entendidos. A comunicação não pode ser entendida apenas como participação. Fazer parte de algo nem sempre quer dizer estar comungando com o todo. Contudo, o participante/leitor – se bem afiando – é quem ajuda a harmonizar a canção, pois temos muitas vozes, somos muitos, mesmo que só um dos de nós é que segure a pena, mergulhe-a nas tintas para sangrar no papel.
Por fim, acho que o mundo promoveu os escrevinhadores a arisco, medrosos que se escondem nas próprias entranhas. Ainda bem que, volta e meia, seus espíritos se vazam pelos dedos, desafiam-se para além das carnes e se reescrevem em abismos forasteiros. O que lês são meros cacos, limalhas caídas daqui, dali. Junte-as todas, se possível, e refaça todos eles com um pouco de ti. Não permita que alguma ‘escrevinhação’ siga quebrada neste escuro interior: leia!
É, acho que escrevemos para tentar existir, para existirmos um pouco em você... 

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

O SUPER-HOMEM DE BIGODES

[...] Assim, por detrás das palavras de virtude se escondem vossos mais secretos desejos de tiranos!
(Nietzsche)

Quem não se lembra daquele extraterrestre bem penteado e que cortava o céu sempre que alguém corria perigo? É um pássaro, é um avião... O bordão está fresquinho em nossas mentes, não é mesmo? Contudo, poucos sabem a verdadeira origem deste herói. Não, não estou me referindo à Krypton. Na verdade tento fazer uma leitura pouco mais livre. Uma que seja pautada na ideia primeira, na essência que deu origem a este, que é um dos personagens mais carismático dos quadrinhos: o Super-Homem.  
Difícil comprovar se a fonte se afina, se jorrará algum néctar “bebível” no que tenho para dizer. Porém, livremente – como já afirmei –, tentarei estabelecer relações possíveis entre a filosofia nietzschiana e a cultura pop.
Vamos por ordem. Entre 1883 a 1885, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche escreveu uma de suas obras mais conhecidas, o “Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém”. O escrito trata de certo momento da vida de um homem que resolve se isolar do mundo para melhor compreendê-lo. Seu nome? Adivinhou? Sim, Zaratustra. E entre sua filosofia escapa-nos o pensamento de que “o homem deve ser superado”, tornar-se um Übermensch – traduzido às vezes como ‘além-homem’ ou, até mesmo, super-homem. E é neste último (acreditamos) que o criador do ‘kryptoniano’ se baseou. Na certa que Nietzsche tinha algo mais a falar através do personagem, mesmo assim, por aqui, pontuamos somente alguns.
Vejamos. Assim como Zaratustra, o Super-Homem dos quadrinhos também faz lembrar à superioridade de um único homem perante uma sociedade inteira. Tanto que o filósofo nos lembra do poder do Sol ao se colocar todos os dias diante do mundo. Coincidência ou não, o Clark Kent se abastecia desta mesma potência, a dos raios solares. Não é por menos que o famoso Superman das editoras representa o estereótipo norte-americano de ser – de maneira nem tão sutil assim. Eles querem que acreditemos na superioridade dos americanos sobre os demais povos do mundo. Inclusive, se me permitem, recordo alguns elementos: seu uniforme carrega as cores da bandeira das “treze colônias” e sua espaçonave caiu justamente na terra do “Sam”.
Enfim, será que se caísse no Brasil ele usaria roupas verdes e amarelas? Improvável. Os latino-americanos, pelo menos aos olhos dos ianques, não atendem ao chamado superior, o que chamam “o modo americano” – e como se orgulham disso... 

terça-feira, 18 de agosto de 2015

SOBRE O QUE PRECISAMOS PARECER...

Cada homem é uma raça.
 (Mia Couto)

Não é raro alguém se surpreender quando se depara com um tipo baixinho, mestiço, vestindo roupas fora de moda e ainda por cima desenvolvendo diálogos pouco mais afinados para sua aparência. Nestes momentos, confesso, sempre me lembro de Machado de Assis e de Sócrates. O primeiro, igualmente, baixinho; igualmente, mestiço... talvez não encontrasse público para estes dias, nem ao menos como professor de literatura (pelo menos não em determinados lugares: olhos escuros demais não passam credibilidade). Já o segundo, se lhe fosse negado a voz (e negariam), na certa, também morreria em si mesmo. Ficaria ali, como um mendigo barbudo e faminto de “querer dizer”. Enfim, nenhum deles conseguiria espaço por não atenderem a nenhuma exigência “modelo”. Pois então.
Não exagero, já que são exatamente os elementos que tanto negamos, mas que andam presentes nas estrelinhas que só aparecem quando alguma nuvem ‘desengorda’ um pedacinho de céu. Pareço meio maluco escrevendo isso. Só que não. Observem a sua volta. Deixem de lado os lados que te querem parciais. Estamos ficando cegos de tanto olharmos paredes, meus amigos. Sempre é bom observar melhor o que existe além do que podemos ver. Ou melhor: é bom sairmos dos redondinhos dos olhos, há um comércio que nos vende esse tipo de redoma fumê...
Vejamos. Todos já devem ter ouvido falar em Alexandre Dumas. Está bem, vou facilitar. Ele escreveu “Os três mosqueteiros”. Ah, viram?! Não ficou mais claro? Errado! Dumas foi mulato, era filho de uma escrava liberta. Surpresos? Não se surpreendam, Senhores. Ele não foi o único, outro dia conto sobre outros... Contudo, continuando, por conta do preconceito, seu corpo só foi transferido para o “Panteão Francês” há pouco tempo, em 2002 (lembrando que faleceu em 1870). Bom, pelo menos hoje já pode apodrecer em paz junto a outros gênios, já que foi (re)enterrado ao lado de Victor Hugo e Voltaire.
Enfim (só para provocar!), vocês deixariam seus filhos terem aulas de poesia com um Cruz e Sousa? Ele era negro, se não sabem. Sei que diriam que sim, mesmo que na prática digam sempre não. E censurar como? Poesia parece estar tão fora de moda. O que vale? Não respondam. As repostas conhecemos bem.
Sigamos a vida...


sábado, 15 de agosto de 2015

MAIS PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM

- Papai, inventei uma poesia.
- Como é o nome?
- Eu e o Sol. [...].
 (Clarice Lispector)

Nesta semana, como sempre faço, aproveitei uma folga entre as aulas para visitar a biblioteca da Escola – os professores chamam esses momentinhos de ‘janelas’. Nada mais justo, já que nos debruçamos sobre aqueles tempos e olhamos para fora, respiramos. Não que nossas disciplinas sejam penosas (creio que ninguém pense assim). Pelo contrário. É justamente a hora que temos para pensarmos um pouco mais nelas. Às vezes, motivados pela troca, conversamos entre nós. Em outras, refletimos sozinhos em algum canto de nós mesmos ou de algum dos lugares dali. Cada qual procura afinar-se da maneira que acha melhor. Quanto a mim, não é raro, sempre que posso frequento a biblioteca para ver se algum mundo daqueles saiba tocar alguns dos espíritos que carrego. Ah, e sempre tocam, sempre um toca! Da última vez, inclusive, recebi um chamado. Enquanto conversava com a colega que cuida do setor (ela ama aquele espaço), mostrou-me, em meio a tantos títulos, um livro que me sorriu. “Acho que vai gostar desse, Dilso!” Tratava-se de um tambor silencioso e que estava louco para me barulhar: era o coração da Clarice Lispector.
Costumo me referir a nossa bibliotecária como bruxa. Ela parece lançar feitiços nas obras. Sabe convencer a qualquer um. Fala encantada sobre o que leu. Dá vozes àqueles quietinhos que querem ser levados. Guardiã excepcional, se o leitor me permite dizer. Bom, levei. E já nas primeiras páginas li algo do tipo: “Não se trata de literatura, mas de bruxaria. Não foi por acaso, não custa lembrar, que, no ano de 1975, a escritora foi uma das convidadas para o I Congresso Mundial de Bruxaria, realizado em Bogotá.” Bom, a feitiçaria havia começado muito antes de eu abrir aquele livro. Feitiço?
Naquele dia mesmo, comecei a ler. Ele pede nossas vozes interiores, porém – confesso – continuei a leitura em voz alta. Impossível perceber “os-pertos-da-selvageria-do-coração” de Clarice sem se envolver, sem imergir em si mesmo, sem se ver nas imagens dela. Explico: O livro, “Perto do coração selvagem”, foi o primeiro que escreveu, tinha por volta de 22 anos. O que me assusta pela maturidade daquela juventude. Uma vez que o capítulo no qual a personagem (Joana) fala com o pai, tenta fazer com que ele entenda sua condição de “ser-criança”, é exatamente o que muitas vezes faço ao ser interrompido por minha filha mais nova, a de oito anos de idade. Tal como o pai da história, não soube deitar o 8 e fazê-lo ‘infinitar’ (∞) naquela vozinha que me pedia atenção. Como ele, confesso que subestimo...
Putz! Acabo de perceber. Vou fazer isso. Fecho o livro. Largo este texto e vou ver se os “logo-alis” de minha Joaninha ainda têm espaço pra mim. Não quero ser o pai que engorda decepções e deixa que as selvas invadam a nenhum coraçãozinho.  
Ah, Lispector! Tu foste uma bruxa mesmo! Ainda é.
Vou indo. Preciso dar um jeito na vida...  

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O CRONISTA E O POETA

Para ouvir colorido ou povoar os olhos de mundos, queria ser poeta ou músico.

Tudo parece bem. Meu cachorro brinca no gramado. Bem ali na poltrona o gato ronrona enquanto se lambe. A janela continua com aquele desejo de ser pintura. O Sol aponta um dedo escapado por uma fresta do céu. Alguns livros ainda estão sobre a mesa, abertos como se pedissem leitura. Caneta a postos. Rascunho. Pois então! O cenário parece favorecer para mais um dia claro, para mais uma crônica que insiste em acontecer. Prioridade? Há muitas! Mas nem o cachorro, nem o gato, nem a janela, nem o Sol, nem os livros, nem a caneta, nem os rascunhos me deixam seguir. Tudo se desenha para que eu aconteça uma nova verdade. E sabe como é. Os temperos precisam de medida, de certa minúcia. Uma pitada a menos ou a mais é o bastante para que a coisa toda desande, ‘desaconteça’. Difícil fazer sentir só com as palavras. Elas não têm rostos. Poderiam ter olhos, já facilitariam bastante. Não tendo, seguimos desenhando para ver se nos afinamos no tempo e nos sentidos.
Confesso que diante de mim há também um poema. Poema que foi selecionado entre tantos outros para estar morando dentro de um livro, obra que, neste momento, fala comigo. Mastigo alguns dos versos. Tento ouvir o som que ele faz entre meus dentes. O gosto que tem. Ora, bolas! O Sol acaba de entrar em meu quarto. Era o que eu precisava. Será que foram os versos deste poeta?
Outro dia ainda falei sobre isso com uma amiga. “Não consigo vestir minhas imagens com as roupas finas que o poema pede.” Não que me importo tanto assim com roupas, sou como Diógenes, o Cínico. Ando nu. Mesmo assim, não pense que nunca tentei vestir meus pensamentos com a calça de alguma estrofe, ou com a camisa de seda daquele soneto bonito do tipo que só vemos em Shakespeare, Camões e Florbela Espanca. Nem o cinto daqueles versos serve em minhas ‘escrevinhações’. Apertam o que preciso dizer. Sou gordo demais.
Contudo, uso da crônica para falar em um amigo que nega o que não sei fazer – o poema selecionado daquele livro saiu de seus dedos. Entretanto, nega-se a ser, a admitir que as roupas lhe caiam bem (até o Sol espiou um pouco comigo). Quando se aventura em dizer, diz versando. Diferente de mim que só ponho ovos. Quando uma ideia nasce, sobram cascas para todo o lado. A ave sai, mas não é ave que fiz nascer. As cascas é que são minhas. O amigo é que sabe revestir de penas os passarinhos que saem ao mundo e que preciso mostrar. Mostro, mas é ele quem o faz voar.
Acho que preciso parar. Encasquei demais este texto. Só queria que o amigo-poeta não desistisse. Meu negócio não são asas. Meu céu é o chão. O teu, albatroz, é lá no alto. As estrelas gostam de ficar mais perto dos poetas. Também gosto. É por isso que escrevo, mesmo que minha poesia seja pelada, que não caibam no poema. Ah, senhor alfaiate, queria saber sentir o mundo como sentem as suas mãos de tecelão. 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

NO TEMPO DAS ORELHAS PUXADAS

“Sem música a vida seria um erro”
(Friedrich Nietzsche)

Hoje tirei a tarde para ficar em silêncio, para recordar. Gosto de me reencontrar com algumas estradas. Viajar de trás para frente. Acho que assim desligo um pouco dos “agoras”, pois, como já disse o poeta: “Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida.” Escrevinhar, pelos menos para mim, é um ‘desengravidar’ alheio que ‘embarriga’ outras gravidezes dentro da gente. Deixamos estas, embarcamos em outras vidas. Desse modo, volto um pouco para o verão do ano de 1985, aproximadamente.
Ainda lembro, estávamos em sala de aula (primeira série). Quem me vê hoje enquanto professor, nem imagina que um dia fui bastante tímido. Um morador de si mesmo que não saía nem por um doce – pelo menos não na Escola. Enfim, quietinho – a turma toda estava em silêncio –, olhei para todos os lados e não encontrei a professora. Senti o clima engraçado, uma vez que só ficavam assim quando ela estava por perto. “Bom!” – pensei – “Ela deve ter decido para buscar alguma coisa”. Olhei para a caixeta de madeira, peguei dois lápis de dentro dela, e um desejo incontrolável me engordou a vontade de ter que batê-la como se fosse uma bateria. Bati. Sentia-me como um rei do rock. Quando virei a cabeça, quem eu vi se levantar? Sim, ela estava agachada tentando organizar alguns livros na parte de baixo da estante, quando... Como minha orelha doeu. Naturalmente, senti uma raiva danada na hora, mas passou. Pensando bem, sinto graça quando penso na cena.
 Por um lado é bom amadurecer, só nestes “agoras” posso ponderar sobre meu espetáculo. Ah! Como os poetas e os professores carregam a mesma linha, o mesmo fio de Ariadne. Por hora são amados; por outra, esquecidos, odiados até. Mas o que move as asas desses nobres não é o vento, não é o céu. O que move é a vontade de levar todo mundo junto – mesmo sem poder. Então, esperançosos, ficam pesados e resolvem andar, tal como albatrozes caminhando pateticamente sobre o convés de algum navio. No chão se tornam instrutores de passarinhos. E como é bonito quando percebem algum deles alçar voo...
Foi o que aconteceu. Na verdade é o que acontece. Sempre que algo pouco mais importante sai ao mundo, um texto meu, uma conquista minha. É certo, lá está ela tecendo algum comentário, ou sorrindo satisfeita por me ver ‘ascender’. Coadjuvante? Não mesmo, porque foi ela quem me ensinou as primeiras letrinhas. Amou os seus. Dedicou-se, mesmo que fosse preciso se deixar um pouco de lado para poder fazer com que nós levássemos as letras a sério, tão a sério que hoje sou capaz de brincar com todas elas, de escrever, inclusive, estas memórias.
Obrigado pela chamada! Hoje entendo o seu empenho. O rei da bateria cresceu os ouvidos para sua canção – e isso não é trocadilho.
Mas que doeu. Ah, isso doeu... 

ESPELHO, ESPELHO MEU...

O amor vira madrasta ao nos perceber para fora de seu reflexo. Espelhos são frágeis, não negam beleza a quem os pode quebrar - só que não somos espelhos.

Se as imagens não acompanhassem nossos movimentos, as odiaríamos – nos odiaríamos nelas. Cada um de nós é uma legião de males e de benes – somos mestiços. Os olhos não sabem enxergam isso, uma vez que a convivência duradoura acontece quando o outro é inspirado a nutrir certa vontade de ser ele mesmo quando está contigo – sem cobranças de ser o que você espera ou deseja ver. O contrário disso é o ódio, este irmão mais velho da tolice e do narcisismo. Amar os outros, às vezes, exige que nos deixemos um pouco de lado.  
Dia desses li esta frase na rede social: “Seja você aquele que gostaria que estivesse por perto.” E vai saber se alguém desejaria de fato o que eu quero de mim... Estranho, ainda bem que temos as diferenças para nos afinar: uma corda toca dó, a outra ré, mi, fá, sol, lá, si, e seus interstícios! O que eu quero nem sempre é bom para você.  Pois então. Minhas construções fizeram de mim o que sou: parte daqui, de ti, dali, do Sol, do dia, da Lua, da noite... Amanhã serei mais outros. Só peço uma coisa. Todos somos um mar, se me tiveres demais, morrerás afogado, ou – como eu – navegarás à deriva por aí, já que mesmo necessitando uns dos outros, eu sou eu, você é você. Sim, queria que os olhos todos funcionassem, também, de fora pra dentro, já que qualquer julgamento desanda pobre quando tiramos a base somente por nós.
Enfim, já fomos tantos que até dá para perder as contas. Todos fomos, tanto os de mim quanto os que habitam em ti. O problema é saber lidar com tamanha multidão, porque só o tolo vê apenas uma pessoa, os que sabem (ou tentam) se ler, assustam-se por ter a consciência de que faltam olhos para tanta gente que mora por detrás de cada sorriso. Se há muitas verdades – ora bolas! –, também existem muitas maneiras de sorrir.  Até mesmo a tristeza sorri para alguma coisa, mesmo não sendo nítido para a cegueira de nossa visão.
Tenho medo dos espelhos. Eles podem condenar construções – os outros é que nos alcançam tijolos e nós a eles. Amar demasiadamente a si mesmo, não pode ser bom, como ocorre em qualquer tipo de excesso. É a ruína, o abandono da obra.  
Então, para inquietar ainda mais, encerro com Fernando Pessoa:
"Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos." 

MEMÓRIAS DE UM VAGABUNDO

“Tudo o que não invento é falso.”
                             (Manoel de Barros).

Não passo de um 'estoriador' de memórias inventadas. Um coletor de imagens perdidas e ‘amanoeladas’. Um vagabundo ‘passarinhador’ de coisa nenhuma. Mestre do nada e doutor na engenharia de encher vazios. Sei também que o que uma criança vê você já esqueceu. Deixou guardado demais os olhos daqueles meninos. Quais meninos? Ora! Aqueles que você foi.
Quanto as minhas vagabundagens, elas só vieram à tona quando descobri a "Palavra Criança", desde então fico brincando e me esqueço de horizontar o tempo dos adultos, deixo explodir aqueles que te acusei de esquecer (os meninos, os nadas). Acho até que todas as palavras deveriam ser 'encriançadas', explodidas. Palavra não é coisa que se engarrafe:
"Pedrada no vidro. O vidro quebrou. Garrafa quebrada. Desculpe, sinhô!'"
Ah, não consigo parar... virei guri, sô!
Nunca consegui, fora da palavra (música eu não sei fazer), unir determinado tempo a um dos de mim. Difícil escolher um daqueles – em um só ano podemos ser tantos! Bem diferente da matemática. Nela sobram dedos, um mais um sempre dará dois.  A escrita, a poesia, nos ajuda a não dizer 'coisa que vivi'. 'Coisa' é o nu, o pelado que ainda não se 'empalavrou'. Beija-flor! Pronto. Já vesti dois. Parece um, não parece? Próximo!
Se estou mentindo? Nunca. Quando escrevo, toda a história que invento é a mais pura verdade. Outro dia mesmo, ao passar em frente de uma casa, recordei que ali morava um antigo amigo. Foi por acaso. Mesmo assim, olhei e logo senti sobre os ombros uma cachoeira repleta de imagens – estávamos na primeira série. E embebido naqueles "ontens", subi para respirar. Foi quando a lucidez me encheu de presentes: "Não sabe dele. O amigo não é mais o que anda cheio de barbas aí pelo mundo. Aquele que foste é que sabia daquele que ele foi. Ali é que se conheciam. No mais são estranhos." Só que o reencontrei aqui, nestas linhas. Onde também o deixo.  
Pois é, o poeta tinha razão: “Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.” Escrevendo sinto-me até um maestro de cada um dos de “mins”. Afinar todos é que é difícil. Os meninos não param de meter os dedinhos neste texto (não sei se repararam), desconhecem a doença da razão e da coerência textual. Deixo que brinquem. Aqui foram eles que me dedilharam, inventaram coisas, estes arteiros. Por isso, perdão aos adultos que clamavam por um texto bom. ‘Vagamundei’, desrespeitei a lei. Aqui foram os garotos que trabalharam por mim.  

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

(A)CORDA SOL...

                                                                                                  Todos são tocados pelos próprios tambores.

Outro dia, esperando minha filha enquanto consultava o médico, ouvi algumas pessoas em uma prosa feliz – não tenho culpa, os ouvidos não funcionam como os olhos, eles não podem ser fechados, vivem de forma autônoma.  Enfim, precisei ‘desacontecer’ um pouco para poder entender e acompanhar a animação que acontecia por ali, bem atrás de mim. Falavam sobre histórias cheias de lonjuras e outras, aparentemente, pouco mais próximas. “Doentes mais faceiros!” – pensei. Quando se aproximou uma senhora. Parecia tímida e perdida. Entregou alguma coisa, um papel. “Será que podem me dizer o que está escrito aqui? Eu não sei ler.” Todos pararam e a atenderam, penso que se tratava de um exame. Fiquei feliz que o bom humor era realmente bom. Ajudaram e a aconselharam. Inclusive, para minha surpresa, uma se ofereceu para ir com ela resolver o probleminha. Sim, havia motivos para sorrir. Os corpos estavam doentes, imagino (já que aguardavam consulta), só que as almas não, todas intactas e livres para outro nível de afinação: a do respeito.  
... e minha moça apareceu. No caminho, depois de perguntar sobre sua saúde, claro, contei o que havia acontecido. Nada disse. Preferiu sorrir. Acho que era um de meus espíritos que não estava muito afinado mesmo – na certa a corda SOL. Minha filha pareceu ter entendido bem. Quanto a mim, através daquelas frestas, pude abrir a janela que nem sabia que estava fechada pelo lado de dentro. Abriram-me pelos ouvidos e pelo amor, ops, humor.
Espero que minha menina perdoe tanta surpresa, como se não pudesse existir atitudes assim. “Pequena.” – diriam alguns. “Elas não são sempre assim.” – mais outros. Pois então. E quem de nós pode ser? Somos tantos por debaixo das peles! Hoje tive sorte, até. Fui testemunha de um daqueles momentos bonitos que acontecem para fora. Por isso resolvi contar aqui. Medo que se perca.
Desassombrar, enfim, eis a lição. Livrar o mundo daqueles 'eus' que amam desmedidamente a si próprios e que afastam outros tantos espíritos que, logicamente, não podem ser cópias suas. Ensaiar os humores é preciso, pois mesmo sendo impossível ver-se como um outro, acabamos sendo outro outros para outros também. Exorcizemos nossos Narcisos antes que eles nos prendam nos espelhos de alguma lagoa triste e solitária por ali, em algum cantinho de dentro de nós mesmos.
Agora compreendo por que sorriam tanto. Na próxima quero ouvir cantores...

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

UM CACHORRO CHAMADO RESPEITO

A vida é quem veste de poesia os poemas.

Hoje me lembrei de um cachorro que meu avô havia conseguido. Resolveu chamá-lo de Respeito. Ninguém nunca soube exatamente se por ironia livre, ou se apenas vestiu uma malícia com algum “querer dizer” mais pessoal. Ah! Eu me divertia muito com seu bom humor. Meio espirituoso – confesso! –, mas que apesar de sisudo em determinadas situações (tinha “Severo” no sobrenome), gostava de seus netos, isso ninguém pode negar. Acho que ele tentava consertar a desafinação dos concertos vividos junto aos filhos.
Conto:
Os tempos eram outros. As verdades se perfumavam diferentes dentro daquele idoso chamado “Depois-de-ontem”. O medo se confundia com o amor. Quanto ao ódio, este já era comum. Principalmente depois de uma “tunda de laço” – nem todas justas. Não havia ouvidos dentro da condição em que se encontravam. Não o censuro, nego-me a cometer atemporalidades, uma vez que a prole era tão grande quanto o mundo de necessidades enfrentadas, e sabemos: isso afeta profundamente um homem. Era difícil repartir carinho, havia muitas crianças. Vidas arenosas, eu sei. E “a felicidade é uma questão de pontaria” (Mia Couto). O velho desapontou. Depois tentou apontar-se no apontar para outros alvos, que fomos nós: os netos. Acho que conseguiu. Ao menos eu amei o que ele havia se tornado – e nós, de certa forma, fomos sua redenção. Não conheci o outro (o pai), ao menos não pelos meus dedos.
Isso dá até certa saudade do cafezinho que minha avó demorava a passar para o Dori (É! Lembra DOR sim...). Valia o tempo, o cheiro e o gosto, pois sabor e saber são cores impossíveis quando damos exclusividade à visão. Confiar só nos olhos é a forma mais rápida e miserável de empobrecer-se por completo, já que as cores são mais ricas quando o corpo todo colabora para esticar o mundo. Por isso resolvi vestir as lembranças, engordá-las, dar alma, delegar corpo a elas. Preferi sentir democraticamente o que as interioridades iam ditando.  Vida besta! Abri meu avô para vocês. Vesti-me de sentidos para torná-lo completamente nu. Mas não, não o julguem. Ele sentiu muito quando seu Respeito morreu. Confundiu o cão ao nome e ajeitou o homem que doía dentro do Dori. Afinou-se, fez as pazes consigo mesmo, chamou as crianças, e morreu.
Quanto a mim. Eu tinha uns dez anos quando a “DOR” ‘desaconteceu’! Não entendi, voltei a brincar. Quando senti uma dorzinha no peito. E como doeu...