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terça-feira, 24 de novembro de 2015

VOCÊ EXISTE?

Bastou um pingo para que o universo inteiro mudasse. Se ele acontecesse diferente, seríamos outros. O que dizer então da chuva?

Às vezes nos esquecemos de que o outro é o outro e que também somos outros para ele. Pois é. Como o dia, existem situações em que é melhor fechar-se. A experiência nos obriga a ‘noturnar’ de vez em quando. Tarde vamos sentindo que o fígado precisa estar saudável para continuarmos certa existência – mesmo que breve.
Verdade. Há momentos em que nos resta a impressão de que estamos virando ostras; em outros, clarões: multidões solitárias.
Mas nem tudo é desespero e extremos existenciais. A música e a literatura têm o poder de ‘reacordar’ dos cantinhos aqueles meninos que fomos (de abrir o que estava fechado nessas multidões solitárias das quais falei) – e a filosofia, sempre arteira, faz questão de deixar os olhos faceiros ao iluminar toda essa ‘refestelação’. Sem isso cairíamos num ostracismo perpétuo e medroso em relação a nós mesmos, às pessoas e às coisas. E pensar que tudo acontece dentro da gente...
Quem nunca teve medo de passar pela existência sem sequer desenvolver certa consciência de ter de fato existido? Você existe? Eu existo? Nós existimos? Tem certeza disso? Que bom! Agora, para continuar, exista para mais alguém. Assim fica mais um tempinho por aqui. Boa maneira de driblar, por hora, aquele esquecimento inevitável e, por conta disso, temido, pois só existimos assim, vivos e conscientes – pelo menos para nós mesmos.
Então, só somos de fato quando temos consciência de ser – a existência nos exige este espanto. "Dessabidos" disso, ainda nem nascemos. Estamos apenas grávidos de nós mesmos.  To be, or not to be, that is the question
Sim, amigos, escrever tem lá o seu valor, uma vez que, cedo ou tarde, mesmo com os pensamentos quietinhos, voltamos de onde estivermos pelo simples empréstimo das vozes de algum curioso qualquer. Alguém que saiba despertar aquela ‘conscienciazinha’ que tínhamos – aquela luz.
Putz, como é difícil existir! Agora que fui pensar nisso:
"Cogito ergo sum" (Penso, logo existo).
Não, não me esqueci da pergunta. Retomo: Você existe? Olhe para suas mãos, para este texto. Olhou? Então acaba de ganhar e dar existência, já que foi você quem os pensou.
Bom, acho que não deveria escrever enquanto bebo, dá nisso! Desculpem.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

UM GATO NO FORMIGUEIRO

Não é segredo, todos sabem que gosto de bichanos. Encontro sempre um silêncio pouco mais afinado ao lado de alguns deles – são mestres nesse tipo de afinação. Houve um tempo em que até minhas leituras não se completavam sem ter um amigo desses por perto, acostumei-me com seus ronrons. Sem eles acabo existindo menos e ‘desengordando’ vontades maluquinhas por acontecerem maiores. Exatamente por isso resolvi pôr o nome de minha primeira ‘afinadora’, de Sofia (sabedoria, em grego). Preciso explicar o motivo? Enfim, aprendi com ela a ser eterno, pois, ignorante à brevidade da vida, andava pelo mundo como se pudesse viver para sempre, e podia mesmo. Diferente de outros animais (os que chamamos tão orgulhosamente de irracionais), nós é que gastamos boa parte dos dias pensando e nos preparando para o fim: à morte.
Nesse caso, chutar a bola sempre para frente nos coloca em uma posição delicada, se comparado aos ‘de-sete-vidas’. Acreditamos em platonismos, ‘depois’ e ‘aléns’. Acabamos, de maneira inevitável, nos esquecendo dos ‘agoras’ e de que o hoje é que é o futuro de ontem. Em outras palavras, estarmos cientes de que nossos corpos têm prazos de validade vai nos tornando breves e incapazes de aproveitarmos integralmente um belo carpe diem. É isso: saber que vai morrer não é o mesmo que saber que precisa viver. Observe os felinos, os cães, os pássaros...
Visto isso, preciso contar sobre o dia em que, pela primeira vez, vi um gato implorar por sua própria vida. Estávamos eu e minha filha, a Caroline. Do carro ela avistou um montinho amarelo sobre um formigueiro. Andei pouco mais devagar e constatamos ser um gatinho debatendo-se, ao mesmo tempo em que era devorado pelas formigas. Na calçada, perto do filhote, um homem mais velho ria daquele desespero – havíamos encontrado o culpado. Paramos e pegamos o bicho (não o velho, refiro-me ao gato). Levamos para casa, demos banho e colocamos remédio em suas ‘carnes-vivas’. Era fêmea, recém-nascida e estava bem fraca. Sendo assim, fomos alimentando-a com a ajuda de mamadeiras e improvisos, enfim. E isso faz uns dois anos. Como ela se chama? Ah! Maria de Lurdes (a Malu). O nome provém de uma personagem criada pela escritora Talita Rebolças, obra que minha outra filha estava lendo naquele momento.
Bom, o tempo passou. Hoje, de tão faceira, a chamamos, também, de Maluca, uma vez que não se preocupa mais com os sadismos de ‘bons cristãos’. Reaprendeu a se eternizar, mesmo que alguns hematomas nos lembrem do contrário.  Quanto a ela? Deve nem saber daquela pequena morte, acho que esqueceu! É o que espero!

sábado, 14 de novembro de 2015

MODERNA CASA GRANDE & SENZALA

Vivemos numa repetição constante de valores que já deveriam ter se colorido. É certo, de um lado pessoas de cor ainda pagam as contas das vidas roubadas que, historicamente, assolaram a existência de seus antepassados; de outro, os herdeiros (dos donos dos primeiros) que usufruem de suas raízes ‘aceitáveis’ pela ‘invenção de padrões’ que eles mesmos estabeleceram. Não acredita? Visite as fotos de alguma página social, ou averigue setores entendidos como “elites”, em nossa região. Contrário a esse tipo de atraso, confesso que não sei se há necessidade de reconstruirmos outras bandeiras por aqui, pois não somos Alemanha, não somos África, não somos Itália... Nascendo no Brasil, o que somos então?
Acompanhem comigo. Imagine que se ao invés de decorarmos nossas cidades com manifestações “neogermânicas” e saudosistas, fizéssemos o mesmo com as da Angola? Chato, não? Saiba você que mais da metade de nosso país é constituído por pessoas negras. É preciso encarar seriamente este fato. Estamos na América, e para a vergonha geral, no último país do mundo que aboliu a escravidão. Pensando nisso, é bem triste dar de cara com tanta divisão. Penoso constatar, no auge de um tempo “bem informado”, que a coloração da pele ainda importa por aqui. Um bom exemplo disso são as Escolas: em um extremo, o arco-íris étnico (as públicas); no outro, uma pequena Europa (as particulares), ambas congeladas em prol de atrasos, bem como desenvolvimentos pensados para contribuem a um eterno retorno social, ou seja: “eu serei tua mão-de-obra”; “tu serás o meu chefe, o meu Sinhozinho!” – eis a hegemonia que mais parece uma moderna versão de Casa Grande & Senzala.
Ah! como é difícil ter que ouvir de alguém. “Fiz Senai, estou me puxando nos estudos, mas parece que, ao me verem, tudo vai por água a baixo, me é negado o emprego.” Olho para a pessoa e constato o que o leitor já previu: trata-se de um ser negro ou mestiço. E como dói ter que responder sempre a mesma coisa: “Amigo, sabe por que pedem sua foto anexada ao currículo? Nossa mentalidade congelou no século 19”. 
O que me faz recordar de uma bela reportagem escrita pela excelente jornalista Heloisa Corrêa, no jornal Gazeta do Sul (quarta-feira 10/11/2015, p. 4). Era sobre uma menina que ganhou um concurso de beleza e que sofreu com comentários, no mínimo, criminoso por conta de sua cor. Mais uma prova de que devemos ler muito, sobretudo às lavras de jornalistas bem informados e que nos presenteiam com denúncias lúcidas e equilibradas. Precisamos evoluir, gente! Vamos tirar os véus. Abramos os olhos. Leiam. 

terça-feira, 10 de novembro de 2015

PROFESSOR: PROFISSÃO DE FÉ

Ainda ontem conversava com meu espelho: “Modernismo, texto dissertativo-argumentativo, verbos dissentis, Romantismo, objetos direto e indireto...”. Até que no processo acabei me esquecendo de pentear os cabelos. Putz! Agora eu lembro, era isso que fui fazer. Enfim, caminhei pela casa e – descabelado mesmo – pensei: “Vou trabalhar a linguagem num poema de Oswald de Andrade!” Sentei e pus-me a procurar. Acabei esbarrando numa gramática. Olhei o que havia nela. Passei para outro livro... “Ah, é este! Vem pra cá Simões Lopes Neto!” Pronto, folhei. Reli um dos contos e, novamente, me emocionei com ele. “Como está diferente da última vez!” Abri o computador e escrevi (sou desses professores que gastam a vida escrevendo). ‘Boi velho’ foi minha escolha. Pronto, pude pensar melhor nos dois – no que leu e no que releu – ambos eu mesmo. Mas e as aulas? Precisava pensar mais. Onde foi que parei? Já sei... Mas o Guimarães Rosa me levou para outro lado. Prorroguei. A peregrinação me fez assim, fiquei com os dois. Pronto, devem bastar. Escrevi mais um texto, queria provar que dava mesmo. Tomei um banho (sem tirar da cabeça as aulas que precisava dar) e fui. Só que tive que voltar. Sim, esqueci-me de pentear os cabelos outra vez. “Droga, nem tomei café. Deixa pra lá! Vou pôr o chapéu.”
“Bom dia!” Nada. Quem não ‘barulhava’ ‘barulhava-se’ com um fone de ouvidos enfeitando as orelhas. Olhei para o lado, um menino de costas. Para o outro, uma menina braba por conta do último sermão. “Chamada!” Esperei uns minutos. E lá se foram quinze outros até tudo se estabilizar, pelo menos relativamente. “Guarda o celular, rapaz!” E mais beiços. Cultivei novos ranços ao ter que elevar a voz. Prossegui. Afinal, tinha muito a falar (Desejaria ouvir, claro! Quem dera!). Olhei para o relógio e percebi que aquilo tudo devorou o tempo que tínhamos. Bom, até que não foi de todo mal. O dia passou muito mais rápido do que eu havia previsto. Um novo carpe diem exigia sua vez. E lá estava eu de fronte ao espelho novamente...
‘Não trabalha. Professor não trabalha!’ Mínima que já virou máxima entre os clichés mais utilizados no Brasil. Se concordo? Amigos, neste exato momento estou pensando numa possível aula, a coisa não nos abandona! Por isso não me impressiona quando, de outro canto, alguém afirma ser esta uma profissão de fé, de esforço. Sou feliz nessa vida? Óbvio que sim. Contudo, o desafio diário nos envelhece. Há pouco retorno. Dos muitos, poucos salvamos. Acho que estar aposentado é isso: passear na rua e observar os que deram e os que não deram certo. E talvez, só talvez o tempo possa nos dizer se aquilo tudo valeu a pena – e geralmente valem. Acredito nisso. 

domingo, 8 de novembro de 2015

O BOI VELHO DE SIMÕES

A vida se resumia em trabalho duro. Todos os dias seu couro era riscado por varadas secas. O sofrimento acostumou-se em seu lombo. Na canga tinha existência cativa e dolorida. Quando zumbia no ar a vara fina, sabia que logo atrás vinha o impacto da dor, precisava andar.  A dureza lhe fez entender à rotina do campo: APANHAR, puxar arados, APANHAR, puxar carroças e APANHAR no final do dia, carregando um enorme ípsilon de madeira sobre o pescoço, isso para não cruzar a cerca.
Jovem, sua força era descomunal. Como então permitia que lhe castigassem tanto? O que havia de errado naquele animal? Não era ele, meus amigos! Para o velho senhor, seu dono, o bicho não merecia respeito. “Ele não tem alma!” – repetida gargalhando ao sacudir o relho – “Matuto não sente. Besta não sente, compadre!”
Mas um dia o boi ficou velho. Mal podia se mover. E já que perdeu a serventia, decidiram então matá-lo. Puxaram-lhe firme. Levou o dobro da surra que de costume, estava difícil levantar. Assustado das bancadas, mugindo, como quem pede calma, ficou de pé, ganhou forças e movimentou-se até o destino. O rodopiar do esmeril de pedras, espichou uma língua de fogo em seu focinho. A adaga parecia já amolada. Dois homens, um segurou o pescoço e o outro, de um golpe só, estocou a facada. Pobre bicho. Não entendeu a mensagem. Com a boca engolfada de sangue, se moveu. A violência era tão frequente, que mal sabia a diferença entre varada, chicotada ou grito. Aquela dor era nova. O resto de suas forças levou-o ao “todo o dia”. O golpe o fez caminhar mais uns metros, entendeu que precisava. Ajoelhou-se à frente da canga e tombou o pescoço à espera de mais um risco no lombo. Não veio. O boi velho ficou, e ali dormiu assustado – havia descansado pela primeira vez: estava morto.
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Recriei, a meu modo, um dos contos mais tristes e impactantes que já li em toda a Literatura Brasileira. Ele está em “Contos gauchescos”, de Simões Lopes Neto; o título, “Boi velho”. A cena final me deixou absorto por dias. Cumpriu seu papel de inquietar. Então achei prudente escrever este texto, pois entendi assim as imagens. Entretanto, claro, sugiro que o leitor procure o original. Incomparável o escrito. Cometi este plágio de propósito, tudo para te fazer chegar nele, no Simões. Sua fonte é primeira, limpa e te trará (espero) alguma purificação, alguma catarse. Seu toque é de universalidade, portanto, não há como não ser sentido aqui ou em qualquer outro tempo e lugar. Contudo, é preciso lê-lo.    

terça-feira, 3 de novembro de 2015

“NINGUÉM NASCE MULHER, TORNA-SE MULHER.”

Nada me inquieta tanto do que as mulheres retratadas pela História, Filosofia e Literatura – e é para isso que servem mesmo, para nos inquietar. Não é de hoje que escrevo sobre isso. Revi muitas delas em algumas leituras que fiz. Descobri – claro! – que ninguém veio da costela de alguém, muito menos condenou toda a humanidade por uma simples mordida. A metáfora – acredito – vem de algum símbolo que represente o ato sexual. Corte uma maçã e verá duas genitálias femininas, uma no meio de cada parte da fruta. Acho que é por aí que se pensou esse ‘pecado’ tão medonho. 
Sim, ainda precisamos aprender muito para alcançarmos o equilíbrio, pois não há mais motivos para continuarmos levando ao pé da letra essas verdades. Perguntem a um biólogo, ele dirá (arrisco-me) que nas primeiras semanas após a concepção, todos já fomos mulheres. Depois sim é que, geneticamente, vamos sendo definidos. O que explica nossos mamilos: brotos que, se não tivéssemos nascido homens, poderiam, não necessariamente, alimentar outra vida. Pois então, nada no mundo é por acaso... Inclusive, em outra linha de pensamento, a filósofa e matemática Simone de Beauvoir deixou claro: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (citação interpretada e condenada erroneamente por alguns ‘puritanos’ – no Enem 2015). Torna-se, porque ao nascer, a sociedade já a vai transformando, moldando-a para ser um tipo “aceitável” de fêmea. Por isso o “torna-se”. Entendido? Viu? Nem foi tão difícil.
Seguindo, vejamos alguns casos na Literatura:
Saibam que três nomes já me tiraram o sono: Capitolina, Diadorim e Desdêmona. Leio-as sempre como capeta, diabo e demônio. Nomes provindos da arquitetura de autores que não cometiam excessos, respectivamente: Joaquim Maria Machado de Assis, João Guimarães Rosa e William Shakespeare.
Capitolina, a nossa Capitu, foi vítima de um caso contado, unilateralmente (ela não teve voz na obra), por um doente da alma, um ciumento que não acreditava em sim mesmo, logo nem nela. Quem não se lembra dos diálogos interiores de Bentinho (o Dom Casmurro)? Já em “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, a personagem, Diadorim, disfarçada de homem, fez com que seu amigo, Riobaldo, questionasse a própria “macheza” ao se pegar apaixonado por ela, ou por aquele que acreditava ser um homem. Nas linhas de Shakespeare, por sua vez, Desdêmona serviu de isca à ira do invejoso inimigo do mouro Otelo. Iago, sorrateiramente, o fez pensar que ela havia o traído. Fez dela um demônio, causando a morte da moça pelas mãos do próprio marido.
Nossa! E as mulheres sempre no princípio da causa e da culpa. Seja mordendo uma maçã, sendo acusadas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou, simplesmente, sendo elas mesmas. Saibam, senhores, que no final da Idade Média elas eram, inclusive, queimadas, não só pelos caprichos da época, mas pelas figuras atraentes que representavam. Muitas delas foram mortas por serem vistas como tentação do capeta, do diabo, do demônio, como queiram. Explico: quando um clérigo ficava excitado ao ver uma mulher (ele era humano), punha a culpa nela, nunca em si mesmo, já que simulava uma figura santa, um Santo Iago. Santiago? Ah, um Bento Santigo! Casmurrice divina? Chama purificadora? Sei lá. Só sei que a culpa era sempre delas.  
Enfim, acho que as coisas não mudaram muito. Sendo assim, achei positivo tornar tema de redação (do Enem 2015) “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. A situação precisa mesmo ser maturada e seriamente discutida. E não, nada disso se trata de posição política, mas de reação intelectual de ambos os lados, se houverem. Há muita luta envolvida. E pensar que a menina Malala, ainda outro dia, levou um tiro na cara só porque ousou estudar. Impressionados? Todos sabem, no Brasil, em menor grau, coisas desse tipo ainda continuam acontecendo. Ora bolas! Em que século estamos mesmo?