Eu amo tudo o que foi/ Tudo que já não é... (Fernando
Pessoa)
Há pouco, enquanto
observava as cores da rua, percebi um casal cheio de sacolas nos braços. Entre
eles, parecendo faceiro, havia um menino de aproximados oito anos de idade. O
guri andava firme, cadenciando os passos aos dos adultos... Mas pisquei. E logo
aquela fotografia boa me veio preta e branca, metamorfoseando-se em outra que
nunca tiraram de mim.
Conto:
Naqueles
mil novecentos e oitenta e tantos não havia tantos carros como existem hoje.
Telefones e automóveis eram coisas de ricos. Sendo assim, todos os finais de
ano seguíamos sempre a pé e em passadas firmes para comemorarmos as festas na
casa de meu avô. O lugar era difícil de chegar, confesso. Nesses tempos, os
ônibus não passavam por lá – em picada de roça só as carroças parecem não
sentir a estreiteza do “ter-que-chegar”. Afrouxávamos? Bem capaz, caminhávamos
mato adentro cheios de sacos e sacolas de alças. O descanso acontecia apenas
por alguns instantes quando meus pais sentiam que lhes cortavam as mãos.
Estranho, mas no interior é bem assim: viola no saco, sorriso no rosto e passos
largos para chegar antes da coberta da noite apagar os caminhos à frente do
nariz.
Chegávamos sempre à
tardinha. Bem a tempo de observarmos o medo brilhando nos olhos das crianças da
casa. O Papai Noel era bastante brabo. Ali todos se referiam a ele como “Chrisquinte”,
‘caboclamento’ de algum termo germânico, me parece. Ele carregava uma varinha
fina e, assustador, obrigava os pequenos a se ajoelharem para rezar. E como eu
achava graça de tudo isso! Curtido de tanto assistir televisão, sabia que tudo
não passava de uma farsa. Contudo, visitante que era, seguia no embalo desse
bonachão de barbas fajutas. Não estou censurando, se é isso que o leitor anda
pensando. Preciso esclarecer uma coisa. Luz elétrica só chegou por lá há uns
quinze anos. Rádios? Creio que se poupavam as pilhas. Quanto às bodegas, todas se
encontravam distantes da localidade. Mas essa é outra história, enfim. O que
sei é que, uma semana depois, tudo se iluminava muito mais claro do que os ‘réveillons’
de hoje. Tantos estouros que...
PISQUEI. Confuso ter
que retornar a mim mesmo e perceber que a rua já está vazia. Não acredito, perdi
aquela família ao longe do horizonte de meus próprios interiores.
Sim, algo acaba de
soprar aqui por dentro. Ah, e como esse vazio aperta... Dói.