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sábado, 26 de dezembro de 2015

O VELHO ANO NOVO DE ONTEM...

Eu amo tudo o que foi/ Tudo que já não é... (Fernando Pessoa)

Há pouco, enquanto observava as cores da rua, percebi um casal cheio de sacolas nos braços. Entre eles, parecendo faceiro, havia um menino de aproximados oito anos de idade. O guri andava firme, cadenciando os passos aos dos adultos... Mas pisquei. E logo aquela fotografia boa me veio preta e branca, metamorfoseando-se em outra que nunca tiraram de mim.
Conto:
Naqueles mil novecentos e oitenta e tantos não havia tantos carros como existem hoje. Telefones e automóveis eram coisas de ricos. Sendo assim, todos os finais de ano seguíamos sempre a pé e em passadas firmes para comemorarmos as festas na casa de meu avô. O lugar era difícil de chegar, confesso. Nesses tempos, os ônibus não passavam por lá – em picada de roça só as carroças parecem não sentir a estreiteza do “ter-que-chegar”. Afrouxávamos? Bem capaz, caminhávamos mato adentro cheios de sacos e sacolas de alças. O descanso acontecia apenas por alguns instantes quando meus pais sentiam que lhes cortavam as mãos. Estranho, mas no interior é bem assim: viola no saco, sorriso no rosto e passos largos para chegar antes da coberta da noite apagar os caminhos à frente do nariz.  
Chegávamos sempre à tardinha. Bem a tempo de observarmos o medo brilhando nos olhos das crianças da casa. O Papai Noel era bastante brabo. Ali todos se referiam a ele como “Chrisquinte”, ‘caboclamento’ de algum termo germânico, me parece. Ele carregava uma varinha fina e, assustador, obrigava os pequenos a se ajoelharem para rezar. E como eu achava graça de tudo isso! Curtido de tanto assistir televisão, sabia que tudo não passava de uma farsa. Contudo, visitante que era, seguia no embalo desse bonachão de barbas fajutas. Não estou censurando, se é isso que o leitor anda pensando. Preciso esclarecer uma coisa. Luz elétrica só chegou por lá há uns quinze anos. Rádios? Creio que se poupavam as pilhas. Quanto às bodegas, todas se encontravam distantes da localidade. Mas essa é outra história, enfim. O que sei é que, uma semana depois, tudo se iluminava muito mais claro do que os ‘réveillons’ de hoje. Tantos estouros que...
PISQUEI. Confuso ter que retornar a mim mesmo e perceber que a rua já está vazia. Não acredito, perdi aquela família ao longe do horizonte de meus próprios interiores.
Sim, algo acaba de soprar aqui por dentro. Ah, e como esse vazio aperta... Dói. 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A CULPA É DOS PROFESSORES?

Assim como tudo que existe vai encontrando seu final, o ano também se fecha. Ópera longa e, para alguns críticos, pouco afinada. Nas escolas, lugar do ócio para alguns, os poetas redigiram seus conCertos, e os conSertos também. Só que o dito popular, neste caso, às vezes é imposto como razão de ser: “dança-se conforme a música.” Será? Bom, coincidência ou não, acabei recordando uma citação de Machado de Assis. O mestre escreveu o seguinte: “A vida é uma ópera, e uma grande ópera. Deus é o poeta; a música é de satanás.”. Leia-se assim: a escola busca organizar o poema para tentar acertar aquele ritmo torto e (des)harmônico que volta e meia vem de fora, de uma sociedade viciada pela lei do menor esforço. O que não nos surpreende quando, dias antes da formatura dos filhos, mães nervosas aparecem para tentar afinar a melodia que elas próprias deixaram de ajudar a calibrar ao decorrer dos ensaios de seu músico – e é preciso exercitar cada partitura antes de executá-la em público.  
Por outro lado – enquanto pai –, tenho medo de estar cometendo pecado ao tentar formar filhas que carregam a educação, a palavra e a inquietação intelectual como pauta a ser seguida pelas teclas de algum piano velho. Se o mundo não mudar, elas serão devoradas por uma plateia surda e cuja cultura é a da esperteza em repassar suas culpas para outros afinadores. Espero não estar preparando comida para Quimeras famintas. O que me faz lembrar um fragmento de uma das crônicas de Nelson Rodrigues: "Durante 40 mil anos, o pateta sabia-se pateta e como tal se comportava. Os melhores pensavam por ele, sentiam por ele, decidiam por ele. Mas em nosso tempo, e só em nosso tempo, os idiotas descobrem que estão em maior número. E, então, investidos da onipotência numérica, querem derrubar tudo. Diz o bom dr. Alceu que o grande acontecimento do século XX foi a Revolução Russa. Errou. Houve e continua uma outra muito maior, sim, muito mais profunda: – a Revolução dos Idiotas."
Infelizmente a citação é atualíssima, lamento muito, pois sou de um tempo em que passar de ano era sinônimo de trabalho e dedicação. Tempo em que (se reprovássemos) nossos pais cobravam de nós, não do professor. Passar ou não passar? Passarão? Passarinho? Bom, o que sei é que o gato sempre espera pelo jantar, assim como os bons ouvidos gostam de esperar uma sinfonia bonita. Exatamente como a Nona, elaborada a partir de um poema de Schiller e mestiçada à música de Beethoven. O que aconteceu nessa mistura? A ode à alegria, meus amigos!
Putz! Acho que estou ficando velho. Devia aceitar que a culpa é só do maestro, mais fácil. O que acham disso? A boca do gato, ou a Ode à alegria? Canta passarinho.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

UM ENCONTRO COM GILBERTO FREYRE

Porto Alegre. Nada me alegra em uma viagem dentro de um ônibus do SUS (Sistema Único de Saúde). Sair às quatro horas da manhã. Conservar-se livre dos pensamentos de ter que estar em outro lugar. Perambular por um dia todo em ruas estranhas. Desafiar o tempo para uma briga que não se pode vencer... Ah! Como tudo isso vai se engordando dentro de mim. Tornando-me sabido de que não é bom saber dessas dependências. Nisso, nos pensamentos, vou ouvindo as vozes orgulhosas de meu pai, tudo sem que minhas pernas ouçam – é claro: “O Dilso é pobre, mas tem gosto de rico. Ele tem bom gosto.” Pois é. Minha riqueza anda estreita. Impossível comprar alguma coisa com ela, sobretudo, a saúde. Difícil pagar um médico falando a respeito de uma virtuosa execução de Bach. Ilógico ir à farmácia e tentar encantar com poemas (em troca de algum remédio) a um farmacêutico estranho e avesso ao que não for exato e capital. Puxa! Tenho só isso para dar, sou rico de inquietações, de desassossegos, de nadas no plural...
Foi amargo, mas logo percebi que dessa vez quem se enganou foi meu pai: não se pode converter cultura em moeda. Bem triste constatar que o não saber é que, verdadeiramente, nos torna melhores, pois enxergando pouco, sentindo pouco, sofremos menos, adoentamos menos. Sim, a verdadeira riqueza está na ilusão de que estamos sempre bem, basta fazer uma oração (e claro, há anos não faço isso). Adquirir conhecimento tem dessas coisas, vamos ficando, para algumas coisas, céticos e condoreiros – cientes de que quem nos devora acaba sendo o mesmo condor que nos fez voar, ‘condoreirar’ pelos céus e enxergar clarinho o que se passa neste chão.  
Mas desta vez meus pés me levaram até uma livraria, uma bem próxima ao hospital. (Sabe, tenho uma regra: “livros e pão não podem faltar em mesa digna”.) Quando percebi que um “Casa-grande & senzala”, de Gilberto Freyre, exalava um cheiro fresquinho de padaria. Apalpei e, lógico, comprei. Dirigi-me para frente do “Clínicas” e conversei por horas com aquele Freyrão, tanto que nem consigo lembrar como foi à volta para casa. Contudo, indignado por ir entendendo um pouco mais sobre a história dos negros e mestiços, aqui no Brasil. Aos pouco fui sentindo por que eu estava ali, um gordo vestido em um corpo magro, marrom e, historicamente, defasado.
É, não foi à toa que Lima Barreto morreu na miséria. Mulato culto demais. Cor errada demais. O que melhorou? Nada. Tudo continua ali, escondido, varrido para debaixo do tapete. Quanto pó ainda precisamos respirar? Como é escuro aqui. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

MÃOS TALENTOSAS

Não sei bem os talentos que carregam as mãos. Toda vez que penso nelas vejo clarinho este verso de Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Difícil sair dessa dicotomia, já que somos a soma de benes e males relativos, abusados e, por que não dizer, necessários.  
Enfim, pediram-me para escrever a respeito de um filme homônimo ao título desta croniquinha. E é óbvio que ela recebeu o nome por conta disso – pouco criativo, eu sei. Desculpem-me! Contudo, tratando-se de uma história bonita (assisti) e sendo (de minha parte), também, franco, vejo rebarbas romantizadas bem no miolo de algumas cenas – se comparadas à vida, ao tempo e à Escola real, lógico!
Resumo um pouco para que fiquem a par do que digo: baseada na vida do Dr. Benjamin Carson, o filme relata as agruras e lutas de um homem afro-americano para chegar ao tão sonhado cargo: o de neurocirurgião. Carreira que se desenha já na infância, a partir do momento em que sua mãe firma regras para com os seus (há coisas que só elas podem e percebem).  Dentro disso, como em toda verdade hollywoodiana, é bem difícil não se inspirar e se emocionar, pois no cinema, diferente da vida, as arestas são todas cortadas. A realidade é imprecisa, o cinema positivo não. Se não cortassem algumas coisas, obviamente, não suportaríamos, além de nossas cargas, carregar as “não-precisanças” de cada detalhe dos personagens. Seria chato. Somos chatos.
Mas não se enganem, não estou denegrindo a obra, pelo menos não enquanto obra (gosto dela). Apenas deixo claro que o professor em sala de aula, carregando apenas um par de mãos, precisa lidar com alguns pares de realidade. Pares que nem sempre podem ser ímpares, uma vez que é difícil dar conta de problemas extraclasses (existem coisas que nos fogem e não nos são permitidas). Lutar é importante, sabemos. Ler, como o personagem do filme, mais ainda. O problema é que o mundo é feito de chão e mãos, por isso não é tão simples assim, não é possível tirar partes para ser projetada em uma grande tela bonita de cinema. Ele vem inteiro.
O caso do Doutor é bacana, sem dúvidas, até muito triste, só que atemporal. Salvaríamos outros ‘Carsons’ se tivéssemos a chance? Claro que sim, entretanto daí não seríamos mais professores, seríamos pais. E duvido que alguém se habilite ao cargo. Isso seria impossível. Por isso a grande protagonista foi a mãe. E desse modo, só desse modo (repito) seus professores puderam ajudá-lo a mudar o mundo. Pois é. Mãos de professores só servem para abanar as brasas, não tento brasa, não há fogo e nem talento, só mãos abertas para um afago e fechadas para si mesmas.