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domingo, 13 de novembro de 2011

DON QUIXOTE & SANCHO PANÇA, UMA RELAÇÃO ESQUIZOFRÊNICA**


Suponhamos que nossas razões e emoções pudessem existir em dois corpos distintos. Chamaremos cada uma dessas partes de ‘Sancho Pança’ para a primeira e ‘Don Quixote’ para a segunda. Visto ser Pança um personagem gordo e que está totalmente calcado na relação com os elementos concretos do mundo (adora os prazeres da carne) e Quixote, ao contrário, exibe um físico magro e relações pouco preocupadas com a realidade física, podemos entender perfeitamente, neste caso, que o metafísico e o real estão literalmente divididos aqui em dois corpos diferentes. Miguel de Cervantes, o criador das criaturas, separou-os propositalmente de forma analítica – pelo menos em nossa leitura – para que pudéssemos perceber de maneira mais clara duas características da condição humana que, naturalmente, ocupariam um mesmo organismo/corpo. A intenção – cremos – não é de provocar ou insuflar uma situação maniqueísta (filosofia Persa que separa o bem do mal), mas provar que ambas são dependentes.
Acompanhemos a alegoria:
Imaginemos um balão cheio de gás e que toma altitude de acordo à vontade de outro SER que segura a corda que está amarrada ao bocal desse balão. Sancho, já que é pesado e tem relação segura e firme com a terra, aqui representará esse SER; e Quixote, magro e tido como sonhador, representará o balão. Todos sabem que tomando certa altura o objeto pode estourar e desaparecer, vide sua fragilidade. Daí então a importância de quem segura a tal corda, pois é ele quem regula o limite de subida dessa “bexiga”. A razão não sobrevive sozinha e a emoção, igualmente subordinada, também não. Mas seu fiel escudeiro, Sancho, em um momento de distração, afrouxa nosso suposto fio – o da medida/metrum – fazendo com que o balão, voando em uma altitude difícil de recuperar, escape às suas mãos, causando assim o rompimento e a desvinculação da razão com a emoção, o que explica a morte de nosso “Cavaleiro da triste Figura” ao final da novela. Enfim, não é possível que exista um sujeito essencial e exclusivamente racional ou emocional, somos as duas coisas, dependemos delas e nos equilibramos com elas. Cervantes há quase quinhentos anos (1605) já sabia disso, então nada aqui é novidade.
As versões “tele-novelísticas”, contudo, ainda insistem (em pleno século XXI) em querer nos convencer de que não é possível a incorporação das duas partes em uma. Fazem-nos crer que o protagonista e o antagonista ou a razão e emoção não podem coexistir em um mesmo personagem. Com isso acabamos entendendo que a parte que concerne ao “bem” deve ser tão doce que chega a atrair formigas e nos causar náuseas; e o “mal” tão negativo que representa a ruína total e o dissabor de um propósito inverossímil de humanidade.
Machado de Assis, em seu Dom Casmurro, nos prova essa tendenciosa prática em aceitarmos verdades impostas e unilaterais. A maioria dos leitores ao acompanhar os relatos de Casmurro, tende a cometer sempre o mesmo erro: condenar Capitolina como adúltera. Mas o que temos que levar seriamente em conta é que estamos sendo conduzidos pela voz do velho Bentinho, Dom Casmurro, e que não há imparcialidade em sua fala, portanto não podemos esquecer de controlar as memórias emocionais do personagem com os fatos racionais (uma vez que não conhecemos a versão de Capitu).  Pensando nisso, não olhemos para os olhos de Capitolina com a mesma objetividade que Otelo (na desmedida entre razão e emoção), erroneamente, olhou para o lenço de Desdêmona. Permitamos nos achar e não perder-nos sob a ressaca provocada pela sutileza de um primeiro olhar. Encher a barriga com eles, do ponto de vista exclusivo de Bentinho (emocional), seria provocar uma tragédia semelhante ao que, injustamente, selou o destino da mulher do poderoso Mouro, Otelo. Peço que não cometamos o mesmo. Julgar uma possível traição objetivamente é não saber apreciar o senso dos sabores das bruxarias provocadas pela dúvida que fez amarrarem-se as duas pontas do tempo e da consciência de Bento.  
Na mesma linha de raciocínio, Platão, em seu “Hípias Menor”, nos traz alguns questionamentos sobre o tema da mentira, em pensamentos conduzidos pela voz de Sócrates em discussão travada com um sofista chamado Hípias. Afinal quem é o mais mentiroso entre os heróis de Homero, Aquiles ou Odisseu? Claro, em sua extrema sabedoria, Sócrates prova ao pouco modesto Hípias que nem um nem outro devem ser escolhidos, uma vez que cada um deles faltou à verdade ao seu próprio tempo e necessidade. O que se deve levar em conta é que todos possuem, aglutinadas, as essências desses dois gregos homéricos: a força temperamental de Aquiles, representando a emoção; e a estratégia racional de Odisseu. Ambos, homens ou semideuses, propensos à corrupção.
Se quisermos novelas, leiamos as quixotescas e aprendamos a lidar com situações que explorem – em formatos mais inteligentes – toda a nossa complexa psique. Fujamos à esquizofrenia patológica de classificações definitivas, estereotipadas e ditatoriais. Abramos mais livros e, se acaso optarmos em abrirmos bíblias, tentemos não julgar os ateus como se fossem reencarnações de demônios mefistofélicos, pois ninguém é integralmente santo. Ninguém!


** Esse texto foi publicado no jornal Gazeta do Sul no dia 23 de maio de 2011 ( http://cronutopia.blogspot.com/2011/05/publicado-na-gazeta-do-sul-do-dia-23-de.html), mas reponho-o  novamente como forma de homenagem a uma futura acadêmica das letras que levará consigo seu próprio volume de Quixote. Um abraço a minha querida Cigana Carmen (epíteto que adotamos nas aulas de Literatura para burlar seu nome de nascença, Sandra Borges, e autenticar o de renascença literária, Carmen) . 
Espero que tenha apreciado essa leitura pretensiosa, querida!!! Abraços do Professor!!!

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

TRABALHO DE LITERATURA SOBRE O QUINHENTISMO....


Trabalho de Literatura: Quinhentismo.
Aqui minhas alunas do primeiro ano do ensino médio da turma 1º A da Escola Frederico Kops de Sinimbu, interpretam belamente a concepção e o envio da Carta de Pero Vaz de Caminha ao El-Rei D. Manuel. Percebemos também alguns aspectos da literatura de Catequese com Pe. José de Anchieta doutrinando os povos autóctones entre outras descrições que ganham cor ao som da música de Debussy...  
Parabéns às pupilas: Amanda Müler, Patrícia dos Santos, Marília Stölben, Larissa Pranke, Simone Vogt, Bianca Stulp, Janaína Sturmm, Jéssica Wegner, Jociana Cruz e Vitória Panke. 
Um excelente trabalho queridas! 
O professor está orgulhoso!!!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A COMÉDIA DO DINHEIRO**



  Os maiores devaneios do mundo giram sempre em torno de riquezas incalculáveis. Algo como um gênio que aparece misteriosamente de dentro de uma lâmpada para realizar, em média, três desejos dos tipos, respectivamente: financeiros; e, para variar, dois outros que sempre são um mistério, pois variam de Aladim para Aladim. O fato é que outro dia tive uma surpresa que causaria furor e inveja a qualquer banqueiro suiço, porque ao invés de uma lâmpada maravilhosa tive o próprio deus da fortuna descansando em minha casa.
  Explico: A deidade, modéstia a parte, escolheu minha filha para conduzi-lo, pois sendo já idoso e cego, optou por um ombro que fosse ideal em altura, conforme exigiam suas limitações, e inabalável a seus poderes, uma criança. A menina atraiu Pluto para fora de seu mais antigo abrigo, a biblioteca (essa nas dependências da Escola Estadual Paraguaçu e sob a regência da professora Tânia Lisboa, que optamos citar para inspirar outras), reconhecendo na adaptação do comediógrafo grego, Aristófanes (455 a. C – 375 a. C, aproximadamente), em uma versão para jovens, uma obra que ainda continua despertando curiosidade e inquietação aos nossos adultos e pequeninos leitores. O fato é que essa Comédia acabou trazendo mais fortuna para nossa casa do que poderia produzir o próprio rei Midas com seu poder de transformar em ouro tudo que tocava. Minha menina, hoje, é um pouco mais rica por reconhecer, em seu tempo e jeitinho, uma obra que explora essa metáfora tão atual e engraçada: o infortúnio em perseguir o dinheiro à custa de nossa liberdade – e isso é de fato uma comédia! –, pois, como seguidores e “visionários” auto-proclamados, tornamo-nos escravos voluntários de um velho cego de 2455 anos de idade que anda a esmo pelo mundo.
  Pobre Pluto, seu simples desejo foi o de distribuir o dom da fortuna aos homens dos quatro cantos do mundo; contudo, obviamente, isso não poderia acabar muito bem – e deveras não acabou. Irritado com a desarmonia, Zeus, de um só golpe, cegou-o com um de seus raios e fez com que nós, os ambiciosos mortais, agora tivéssemos que correr a perseguir a riqueza por toda a parte e não mais o contrário. Quem é o cego afinal? E como uma menininha com apenas onze anos – em pleno século XXI – pôde atraí-lo? 
  Enfim, hoje tenho uma filha rica, logo vai ter um castelo, vide ter emprestado seus olhos a Pluto e apr(e)endido um pouco mais sobre a vida com ele!!!
** Texto publicado em 2 de abril de 2011, mas reconduzido até aqui por conta de uma boa lembrança!!! Parabéns filhota!

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

TRABALHO DE LITERATURA SOBRE O CONTO "O ALIENISTA", DE MACHADO DE ASSIS* E NA SEQUÊNCIA FOTOS DO TEATRO SOBRE "O CORTIÇO", DE ALUÍSIO AZEVEDO**

* Esses meus alunos são muito criativos. Parabéns Luíza, Marcos, Betina, Josiane, Bruna e a incrível participação do pai de uma delas como narrador. Ambos alunos do segundo ano do ensino médio (2b) da Escola Ernesto Alves de Oliveira - Santa Cruz do Sul, grande turma... 
Ótimo trabalho meninas e meninos!!!


** Alunos do segundo ano médio (2B) da Escola Frederico Kops - Sinimbu, pousando para foto depois de uma excelente apresentação teatral da obra "O Cortiço", de Aluísio Azevedo. 
Parabéns a vocês também Anderson, Anelise, Alesandra, Beatriz, Elisa, Franciele, Jaqueline, Liliane, Tatiana e Yeny.
Ótima (re)criação!!!

sábado, 29 de outubro de 2011

VINTE E QUATRO HORAS...**




Cansado, cheguei finalmente em casa. O dia fora duro, mas não mais do que a incompetência de desligar por completo e ficar em estado puramente mecânico, sem pensar... Ao abrir a porta, que gemia em uma canção já conhecida, minha esposa recebeu-me com um sorriso de olhos e lábios, enquanto minhas filhas – cada qual a seu modo – abraçavam-me bem forte... Após o ritual de sempre (banho, café, mais abraços...), perguntei a minha mais velha como havia sido o dia... – Legal! – respondeu no ato. Baixei a cabeça, andei em volta de minha estante de livros, olhei para alguns e escolhi um libreto de ópera. Passei em frente à tagarelice da TV; por entre a brincadeira que se desenvolvia em outro nível de tempo; e recolhi-me a um pequeno espaço onde um tocador de CDs ficara calado, acredito, por um bom tempo... Pus o primeiro disco (Pelléas e Mélisande, de Claude Debussy), abri o tal libreto e acompanhei a tragédia...
   O tempo foi passando, enquanto a história ia se confundindo com imagens que dançavam e sofriam sob as vozes de seus personagens... Como podem verdades tão perfeitas evoluírem para uma obra tão bem arquitetada e envolvente? Quase me vi com os amantes Pélleas e Mélisande acompanhando o mar que embalava um navio de velas altas, solitário e que sumia vagaroso na noite descortinada ao final do Primeiro Ato... Abri os olhos e percebi onde estava de fato meu corpo. Levantei da cadeira, cumpri mais rituais, conversei com minha esposa sobre nossas sortes, beijei a todos e recolhi-me... Naquela noite não sonhei, contudo acordei aos poucos com A Primavera, de Vivaldi (apesar do inverno...). Tratava-se do toque de meu celular/despertador. Levantei, fiz o que mandava a rotina e segui para o ponto de ônibus. Entrei, sentei-me no mesmo lugar de sempre, tirei meu Dostoievski da mochila e continuei de onde havia parado... “Não Ródia, como pode viver assim? Isso não é vida. Um rapaz que frequentou a academia... O que aconteceu? Anda pelas ruas como alma perturbada... O que há contigo, Raskólnikov? Vive a conversar com perdidos como Marmeládov em tavernas decadentes de São Petersburgo...”. Fui trazido de volta à realidade quando ouvi o som que denunciava que meu ponto havia chegado. Fechei oCrime e Castigo e segui minhas pernas até o local de trabalho.
Durante a atividade, o corpo ia para um lado e o pensamento teimava em seguir para outro, e, entre uma parada e um tempinho para o tradicional café, tirava do bolso um pequeno volume... “Morte, morte... O que fazer se fora ela que se apaixonara por mim? Essa louca, agora matou seu marido e, sobre ele, deixou o cadáver de sua filha... Para ficar comigo? Essa Medeia, o que ela pensa? Essa bruta só conseguiu atear fogo em um espírito...”. Uma voz externa então me chamou... Hora de voltar! Fechei minha Noite na Taverna e deixei adormecer o Gênio (Álvares de Azevedo) na lâmpada de onde o havia libertado...
O dia acabara, peguei o coletivo, sentei no mesmo banco... “Ródia, nem a carta de sua mãe é o bastante para te trazer de volta ao mundo? Eu sei, estou vendo sua preocupação! Sei também que parece simples resolver problemas alheios, mas levante a cabeça... Caminhe, sim, ande e pense, não olhe para mais ninguém, siga...”. Desci e segui... Porém não conseguia mais observar os rostos da volta, fiquei algemado a Raskólnikov e já não conseguia deixá-lo... Até que o som da porta se abrindo me trouxe mais uma vez para o corpo... Estava novamente em casa. Cumpri a rotina, voltei-me à estante e, agora – isso mesmo leitor, nesta mesma brecha de tempo em que te relato esta gravação do presente! –, decidi ouvir as cores da música de Weber enquanto me pego escrevendo esse relato tão kafkiano, retirado das entranhas de minha própria vida no período aproximado de vinte quatro horas.
Neste momento, escrevendo, já posso respirar, pois transformei a repetição em palavras que se repetirão diferente nos pensamentos de todos os que tiverem tempo para lerem um dia na epopeia de um simples homem no mundo. Sinto que assim renascerá uma legião de espíritos que partirão do porto que fiz em meu peito, pois sei que estarei envelhecendo e morrendo se não compartilhar e transformar o círculo em retas... Meu desejo, com isso, é confeccionar muitas e longas flechas para serem lanças para longe, pois quero evoluir o corpo, esquecer dos espíritos e viver como um comum que apenas nasce, perambula e morre. Tudo sem ao menos inquietar-se sobre o que ocorre dentro de seu próprio âmago, ser novamente apenas um artista da fome que vive alimentado por programas que programam a desnutrição do pensamento crítico da sociedade. Não quero fugir disso. Quero, como antes, acreditar em tudo, ser livre na escravidão da caverna “das oito”, onde o Brasil inteiro raciocina igualmente, sendo FELIZ. 

** Esse texto foi escrito e publicado no dia 2 de junho de 2011, contudo reponho-o para que minhas alunas e meus leitores vejam que tanto o compositor Weber que dei para a Débora quando o Debussy que se deu para Carol, já fizeram de alguma forma parte de minha construção de vida...

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MÚSICA**

    No toque acabamos reconhecendo que uma pelúcia nos denuncia, não pela forma felpuda do objeto, mas pela maneira intensa de como a percebemos em toda a sua textura e delicadeza, onde constatamos que tudo isso já estava impresso em nós. Assim é com a música, ela talvez varie discreta em suas evoluções, contudo seus vapores invisíveis são vistos pelos nossos ouvidos, às vezes, como gases coloridos que se misturam a reinventar cores novas na fábrica perceptiva de cada ateliê particular. Há quem sinta o cheiro de uma sinfonia; o gosto de uma ária de ópera; a imagem de um grande coração que explode nos metais e nos tambores de um allegro; e há também os que sentem o toque áspero de um fagote rouco a acariciar seus dedos... E nessa sinestesia, vitimados pelas inquietações desse empírio musical, encontramo-nos, geralmente, a sós conosco, pois no ritmo inquirido pela vida, sempre estamos sozinhos com nossas emoções. Enfim, nesse concerto vital, indiferente de nossa consciência, sempre estaremos em estado de música, de solidão ritmada pela poiésis de todas as nove musas que cantam em uníssono a cada nota encontrada e organizada tanto dentro (no coração) quanto fora de nosso peito ressoante... 

** Hoje, após estar com a cabeça cheia devido a uma série de problemas... (vide o texto "o prazer pelo sofrimento"), fui surpreendido com um convite onde um   de meus três alunos (a Lúcia/luz) – todos músicos da Orquestra Jovem da UNISC – convidava-me para uma de suas apresentações. Fiquei deveras honrado ao perceber a preocupação de alguns de meus músicos favoritos em querer me ver e fazer questão de que eu os ouvisse durante sua execução – percebi nos olhares... 
  Um bravíssimo e infinitas reverências à Lúcia Carolina, ao Oeslei (o nome dele é assim mesmo hehehehe...) e à Malú!!! 
   Salvaram minha alma, queridos... Obrigado!!! 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A IRONIA MACHADIANA NA ESCOLHA DOS NOMES**


Tendo em vista o enorme acervo de obras escritas pelo autor, Machado de Assis, optamos em analisar apenas o protagonista Damião do conto intitulado O Caso da Vara, pois avaliamos (e tentaremos provar) que a interpretação desse nome, dentro do conto – além de servir de exemplo para que se fomente uma atenção especial às personagens que povoam, também, outros textos do autor – não estão simplesmente para ornamentar, mas contribuir de maneira essencial e efetiva a sua plena compreensão.
Aqui não exporemos outros acontecimentos, por acreditarmos já terem sido bastante trabalhados por outros críticos que se ocuparam em expor a biografia do autor. Preferimos ocupar-nos, propositalmente, com a parte da vida de Machado que expressa uma pouco sobre sua infância, com o pensamento de que se possa entender um pouco mais sobre as perspectivas contidas na ação dramática de O Caso da Vara, uma vez que o autor nasceu em 1839 e o conto se passa em 1850, período em que o escritor teria onze anos de idade. Em uma passagem do conto percebemos a seguinte coincidência: “Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela (...). Contava onze anos”. A mesma idade e o mesmo período em que o pequeno Joaquim Maria Machado de Assis vivera seu décimo primeiro ano de vida. O que não é uma coincidência. Acreditamos que há um comprometimento com o ponto de vista infantil resgatado na perspectiva da infância do autor, não que ele tenha vivenciado fato semelhante, mas na essência de capturar uma personagem inteiramente verossímil.  
Em O Caso da Vara, a trama acontece da seguinte forma: Aturdido pela fuga, Damião, depois de muito pensar, resolve asilar-se na casa de Sinhá Rita, viúva e que mantêm um relacionamento instável com o padrinho do garoto, João Carneiro, relação esta incompreendido pelo seminarista. Movido pela honradez de ver o filho como padre, o pai de Damião obriga-o a estudar em um seminário. Não aceitando a situação, o rapaz, em um ato desesperado, resolve então fugir da instituição. Abrigado, agora, na casa de Sinhá Rita, convence-a a falar com seu padrinho – este que tinha o entregado pessoalmente nas mãos do reitor do seminário – para mediar sua decisão ao pai. Enquanto a história se desenrola, o rapaz, já mais calmo, resolve relaxar um pouco. Como as vizinhas de Sinhá Rita vinham todas as tarde com suas almofadas e seus biltres para bordar sob a atenção da dona da casa que ganhava a vida ensinando e presidindo os encontros, o moço, agora mais tranquilo, resolve interagir contando a elas uma de suas anedotas. Assim como as outras moças, entusiasmadas com a brincadeira, Lucrécia, uma menina negra que bordava em um dos cantos da sala, parou o trabalho e começou a se divertir com o que ouvia. Naturalmente, comovido com a alegria de uma criança de aparência tão sofrida, Damião faz um juramento para si mesmo: resolve apadrinhá-la. Mais tarde, irritada ao ver que o trabalho da menina Lucrécia (que na raiz do latim é algo que se aproxima dos termos rendimento, lucro) não havia “rendido” como deveria, Sinhá Rita pega-a por uma orelha e a arrasta pela sala, mas no momento em que Lucrécia consegue se soltar, sai correndo e implorando para que a senhora parasse de machucá-la. Quando finalmente conseguiu agarrá-la novamente, Sinhá olhou para o seminarista e pediu que lhe alcançasse a vara que estava sobre um móvel perto dele. Naquele momento, até “sentiu-se compungido; mas precisava sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou a vara e entregou-a a Sinhá Rita”.
Dentro das crenças e tradições católicas, resquícios de característica mítica tradicionais, os Santos são entidades reverenciadas e respeitadas como representações equivalentes a algum elemento ou emoções expressas no mundo. Entre Santo Antônio, o casamenteiro; Nossa Senhora dos Navegantes; São Cristóvão, dos motoristas; Negrinho do Pastoreio, o santo que encontra o que está perdido; Santa Rita, a das causas impossíveis (atentem para a missão inquirida a Sinhá Rita no conto: convencer, mesmo que indiretamente, através de João Carneiro, o pai de Damião a aceitar a decisão do filho de não seguir a vida eclesiástica, tarefa quase impossível) e uma infinidade de entidades que fazem parte de um vasto repertório popular religioso, estão os gêmeos São Cosme e Damião, protetores dos inocentes (crianças), Santos estes que, pensando agora em Damião, de O Caso da Vara, nos dão a dimensão exata da intenção que tentou provocar o autor ao optar por um desses nomes, mais especificamente para adequar-se a essência da ação dramática (justamente o momento em que Damião alcança a vara para que a criança seja espancada). A ironia teve seu ciclo: quem deveria proteger – de acordo a promessa e o que se esperava pela expressividade do nome que carregava –, acabou transformando-se, inesperadamente, no veículo da ferramenta da agressão. A sutileza se torna completa em sua sofisticação quando comparamos o nome do seminarista Damião à alcunha “protetora” que permeia o nome de São Damião, um dos Santos cuja essência se firma na crença de que é, junto com o irmão Cosme, um dos protetores de todas as crianças de Deus.  
Enfim, nessa pequena e pretensiosa análise, esperamos poder ter conseguido demonstrar aos leitores um pouco sobre a intenção do autor ao eleger o nome do protagonista do conto. Acreditamos também que sem os elementos apresentados aqui não poderia ser possível a leitura plena do que concerne à compreensão exata da ironia construída por Machado de Assis, em o Caso da Vara. Contudo encerramos nosso relato com a esperança de que os futuros leitores das obras machadianas abram mais os olhos para perceberem o que se esconde por detrás de um simples nome de personagem, nunca esquecendo que estamos interagindo com as obras de um autor que não comete excessos em suas escritas, um verdadeiro “Bruxo” da boa literatura brasileira.

** Essa teoria tem uma história: "como sempre costumo ler no ônibus, naquele dia estava com a obra Terra do Sem Fim, de Jorge Amado (isso já faz alguns anos), percebi que havia um personagem que tinha o nome de Negro Damião. Fiquei inculcado, pois ele era um jagunço que atocaiava e matava suas vítimas por dinheiro, porém tinha um problema: ele recusava-se a tirar a vida de crianças e mulheres grávidas. Daí – nesse ponto da leitura –, bem atrás de mim, ouvi duas senhora conversando sobre os Santos da tradição católica... quando percebi, entre eles, os nomes São Cosme e Damião... Virei no banco e perguntei a que atribuíam-se essas entidades. Uma das senhoras então respondeu que se tratavam de gêmeos que foram consagrados como Santos e cuja a alcunha era a proteção de inocentes/crianças... 
Após esse episódio, agora prestando mais atenção nos nomes,  apareceu outra obra (O Caso da Vara) onde o protagonista também se chamava Damião. Constatei aí, como uma explosão de prazer, que o círculo estava se completando na ironia do nome e do que queriam dizer exatamente os seus autores ao batizá-los".
** Texto já postado, mas colocado de volta para que alguns alunos aproveitem com mais profundidade os temperos machadianos. Pelo menos essa é a intenção aqui!!! 

sábado, 15 de outubro de 2011

SOPHIA E AS FORMIGAS...**


  Ao entrar em casa, fugindo às tensões do mundo e do trabalho, vislumbrou o que ainda não havia presenciado em todos aqueles anos (pelo menos não ali dentro!): uma trilha de insetos - formigas negras - andando nervosamente em fileiras.
  Acompanhando com os olhos a enegrecida trajetória, repetindo nuances e, praticamente, junto com elas equilibrando enormes pedaços de migalhas, a senhora, aproximando mais o olhar, contemplou a grandeza de uma pequena e perfeita organização.
   Debruçou-se...
  O chão estava magnificamente limpo, o reflexo, traduzindo o teto, captava um corpo maior em cima de outro, o córrego de pequenas pernas pareciam transitar sobre elas próprias. A transfiguração parecia óbvia quando as pinturas metamorfosearam-se sobre si, parecia a criação de algo, parecia a percepção de uma outra parte que ela ainda não conhecia.
  Minutos se passaram em relação ao entendimento do outro mundo, seu corpo estava diferente, seus cabelos resumiam-se em duas antenas, seu universo mudara, seus membros mudaram, seus pensamentos mudaram... O desejo era de apenas seguir com sua bagagem e suas, agora, irmãs que já lhe saudavam com a lembrança de que tinha trabalho a fazer. Caminhou incessantemente seguindo o que ainda não sabia. Um impulso maior lhe acometia a tradução de que algo superior estava por de trás daquele ato, algo maior, algo misterioso.
  Passou por debaixo da porta dos fundos, pelo gramado, pelas imperfeições da terra... Parou. Descansou. Seguiu. Tudo era imenso! A fileira de insetos levou-a a um enorme monte. Lá dentro, quase como se as paredes se movessem, saltou-lhe os olhos a vida que se pintava em todas as partes, a colônia de formigas era magnífica.
  - Pela primeira vez me sinto parte de um todo - pensou -, pela primeira vez...
  Largou o que havia no dorso e aliviou-se enquanto retornava. O que trazia no instinto era o que manteria a todos, o que havia portado, em peso desmedido, era o que conservaria as outras que também carregavam o mesmo peso do velho mundo sobre as costas.
O cosmo é feito de tantas aspirações grandiosas que é impossível olhar para baixo. Ao retornar, aturdida com seu novo batente, nem percebeu quando...
  - Sophia, você está aí?
  E, entrando compulsivamente, pisou-a com tanta força que nem deu tempo de gritar. Os resquícios do velho mundo que sustentavam o novo haviam lhe cobrado com uma pegada certeira.
  - O que está fazendo aí deitada?
  - Acho que adormeci...

** Esse conto já foi concebido e posto a muito tempo por aqui, porém insisto em reposta-lo!!! 

domingo, 9 de outubro de 2011

Hermano, o mãos de cavalo (uma leitura possível)**


 O romance Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, apresenta em sua estrutura uma interessante disposição de ideias encaixadas no texto de maneira bastante criativa e madura. Sua arquitetura ganha planos independentes que se intercalam ao decorrer da narrativa, quase como um encontro entre o presente e o passado. Nota-se também, diferentemente do plano da juventude, uma linearidade na narrativa a começar pelo chamamento dos capítulos que se iniciam com horas. Quando a personagem (Hermano) corre de bicicleta e quinze anos mais tarde corre com seu carro (Pajero) é como se os dois tempos andassem para um encontro sublime e não premeditado consigo mesmo. A explicação, talvez, para o nome dado ao romance, seria justamente no aspecto que diz respeito a essa corrida. O cavalo, obviamente, não tem mãos, mas patas, o que nos leva a pensar na forma com que o animal se utiliza desses membros, nos trazendo de volta ao andamento do romance. Metonimicamente as mãos são as partes que representam a personagem central, Hermano e sua “cavalgada ou carreira” na busca por ele mesmo.
   Desde o primeiro capítulo já percebemos uma riquíssima descrição de detalhes, tanto em situações ocorridas com as personagens, quanto nos espaços. Essas descrições minuciosas facilitam, também, na construção de imagens com elementos e situações engendradas na busca de harmonização entre a(s) narrativa(s): a fase adolescente e a adulta. Acompanhando a trajetória do protagonista, ruminada através de suas recordações, temos a impressão de que ocorreram algumas situações bastante traumáticas e contundentes que se refletem agora, no tempo adulto.
    Veja a seguinte passagem como exemplificação do que queremos dizer:
   “Ao pensar no nome da filha percebe pra onde, na verdade, está guiando seu Mitsubishi Pajero. Pela primeira vez na vida, se sente à vontade pra admitir pra si mesmo que não gosta do nome” (p. 96). Aqui a personagem já começa a refletir sobre o homem que se tornou. Seus medos e sua suposta covardia repercutem nas situações que agora vivencia.
   O paralelo em que os dois tempos andam e se comunicam é que fazem com que, progredindo e retrocedendo, prendemo-nos a leitura para não perder-se nenhum fio. E assim, até o final, temos a impressão de sermos os responsáveis por criar a ponte e a tessitura de reconciliação entre os dois caminhos: o do passado e o do presente de Hermano.

** Confesso que para mim é difícil atrair-me por textos contemporâneos, mas esse inquietou-me de uma maneira bastante particular. Assim, ofereço essa pretensiosa resenha/dica de leitura à minha amiga Rejane Martins que tão bem sabe apreciar um bom e velho texto existencial... 
Obs: E ainda por cima é regido pela pena de um gaúcho que tem a minha idade: Daniel Galera (1979). Bom demais! 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Severino da própria vida...**




O que me resta na vida:
Uma estrada repisada
Que ainda mais fica batida,
Uma vida e uma morte,
Morte e vida Severina.
Nas crinas do pensamento
No fosso a vista perdida
Onde passa o cego norte
Cujo passo são sem rastros
Na miséria rebatida
Das patas do tempo torpe,
Sobre as carroças da morte
Do inferno que nada se perde,
E também nada se ensina,
Na vida que se culmina
Nessa máscara de satura
Que no rosto fica e se enfia
Despedindo a harmonia
Que voa na intra-morte
Que perde na intra-vida
O valor que se consome
Nessas palavras vencidas.

** Ao amigo, professor e poeta Bento Sales...

sábado, 1 de outubro de 2011

OS PROFESSORES E O MUNDO...**


Em sala de aula a vida parece multiplica-se, pois – do ponto de vista do professor – os olhares são muitos e as perspectivas variadas no desenho de cada rosto em particular. Assim, partindo do princípio de que cada indivíduo tem por detrás dos olhos um mundo inteiro de complexidade e que a janela para esses universos escapam involuntariamente na expressão de cada um desses semblantes, concluímos que nossas verdades só se validarão se o foco entre esses universos (dos alunos) somados aos nossos (dos professores) estiverem afinados e comprometidos em um mesmo objetivo, esse nem sempre tão simples de se cumprir: o equilíbrio entre as individualidades como parte de um mesmo grupo.
Contudo, os universos às vezes não conspiram a um mesmo fim, porque, como disse acima, são complexos e, ainda, a cada dia, mutáveis em suas organizações temperadas ou apimentadas entre si. O dosador/professor é quem deve (mesmo em um mau dia, pois ele também é humano) tentar reorganizar-se para tais ânimos, visto ser o responsável por essa gama de espíritos que muitas vezes se perdem a vagar por aí. Sendo assim, seria interessante se todos se encontrassem no todo e não se perdessem ao tornarem-se todos. O que nem sempre acontece...
Enfim, dentro da fala do amigo e professor Cassionei (jornal Gazeta do Sul, coluna opinião do dia 29/09/2011, p. 6), algumas aulas chatas são de fato essenciais, tendo em vista que não preparamos meninos e meninas para serem figuras maniqueístas e/ou estereotipadas do que se entende por legal (na ingênua e fantasiosa cópia ociosa de personagens que desfilam pela mídia), mas para um mundo real, igualmente, chato e que a cada dia exige mais e mais de cada um de nós, tornando-se assim ainda mais chato e difícil de entender e entender-se. Ou seja, o objetivo é sempre tentar formar futuros homens e mulheres com capacidade crítica suficiente para sentir os mundos com mais potência e avaliá-los segundo suas medições de interesses, necessidades sociais e existenciais na convivência equilibrada com o “outro”. 
Mas o que não entendo é como uma profissão que tenta fazer a leitura das pessoas em seus universos, formar homens para o mundo e ainda mobilizar-se a uma constante (re)fabricação de si para gerir ainda  mais outros, tem se tornado dia após dia tão desmerecida e desrespeitada pelo olhar inescrupuloso de alguns "filhos da escola".
Etimologicamente, skhole, significou lazer, uma espécie de lugar para o ócio, pois, na época, precisava-se produzir o palpável e essa busca pelo conhecimento, naturalmente, era visto como um ato fora da materialidade.
Confesso que até entendo os homens da antiguidade com seus fatos e atos, mas não consigo compreender meus próprios contemporâneos com seu descaso...  

** Ao amigo Cassionei!!!

sábado, 9 de julho de 2011

NUNCA PEGUE O PRIMEIRO CIGARRO E NEM O PRIMEIRO LIVRO...**

Em uma das mãos a “pena” e por entre os dedos da outra, uma fumaça vai esvaziando-me o peito... Enquanto a primeira, a cada palavra, delineia e acerta os pontos dos pensamentos; a outra vai regulando os humores (todos eles!) até encher o espaço de cinzas de onde espero renascer um espírito reorganizado. Confesso que as duas neblinas só fazem infestar o mundo de “mundices” que insistem em sair de mim, pois quando os pulmões insuflam-se de fumaça, solto, na mistura, um pouco da própria alma que teima – mesmo intoxicada – em desenhar pelos ares o ‘não-lugar’: o retrato em movimento de uma Quimera sendo vencida por algum Belerofonte oculto por entre as nuvens saídas de mim; um verdadeiro Quixote inquietado por moinho de ventos...
Quando lemos, igualmente, ‘tragamos’ as ideias diluídas muitas vezes em medidas de tempos, espaços e ações de seus personagens, enquanto a fumaça tragada vai soltando um pouco de vida roubada para completar um fio particular de neblina a ser lançada de volta ao mundo com um pouco de nós... Isso tudo – já advirto! – faz muito mal à saúde, porque nos vai tomando a alma para completar pinturas esfumaçadas na moldura inexata do mundo, criando obras tão paradoxais que vão dançando e nos mostrando que existe um céu por detrás da densa poluição. Fumaças que entristecem na proporção em que nos vamos dando conta de que na verdade, antes, nós é que vivíamos nos limites de outras neblinas... até, finalmente, descobrirmos que os ares podem também ter um pouco de nós, mesmo pelo mote negativo de vícios imprimidos por nossos próprios sopros.
Portanto, amigo, para que não sofra com esses tipos de maluquices politicamente incorretas, nunca pegue o primeiro cigarro e nem o primeiro livro. O ministério da saúde com toda certeza e razão agradecerá se não fumarem! Quanto aos políticos, esses ficarão gratos por mais quatro anos se não lerem, pois livros por aqui são tão pejorativos quanto o fumo...

Obs: Caro leitor, estou ciente de que não é saudável minha inspiração, porém não posso, mentindo, te desrespeitar, já que gastou seu tempo acompanhando este devaneio até aqui. Sabe, "a verdade tem pernas compridas e pisa por caminhos mentirosos" (Mia Couto). Daí o meu compromisso contigo! 


** Entrego esta reflexão a minha amiga Roseane, pois encontrei-a segunda à noite na UNISC, onde tivemos a chance de prestigiar uma palestra muito boa sobre literatura russa. Ouvir um leitor apaixonado e ter outra sentada ao seu lado durante a evolução das falas, foi uma experiência muito positiva apesar da baixa temperatura... 
Acredito que em São Petesburgo é bem pior, mas estava um bocado frio naquela noite... Contudo valeu a pena!!!! 

sábado, 28 de maio de 2011

QUANDO AS CRIATURAS DE EÇA DE QUEIROZ E DE MACHADO DE ASSIS SE ENCONTRARAM...**

A Madame de Juarre
  
Brasil, agosto.

Minha extraordinária madrinha.

  Eis que me encontro aqui neste outro continente. Parece-me que a tal ponto e distância, como em degredo, as imagens de uma terra familiar às vezes me tornam e atormentam os pensamentos: saudades dos gentílicos lisboetas.
  Ontem – como forma a restituir imagens deixadas em Portugal – resolvi tomar sol em uma praça próxima onde minha tão silenciosa existência não alterava nada. Esse, sem dúvida, seria o lugar ideal para que o mais culpado dos homens pudesse descansar de seus tormentos e repousar em bancos de certa maneira confortáveis. Decidi então me acomodar por alí mesmo, aqueles ares pareciam me fazer bem. O fato resume-se apenas em querer gozar daquele dia pensando estar novamente em minha terra.

  Doravante, deixando para trás saudades e queixumes, - veja o que me trouxe à realidade! - encontrei ao largo de um logradouro paralelo a tal praça, duas figuras extremamente interessantes: uma palestrando para poucas almas; a outra calada fielmente ao seu lado apenas deixando escapar olhares quase humanos: era um cão. Ao inserir-me em meio ao pequeno grupo de ouvintes, deleitei-me com a sabedoria da tal personagem que mais tarde apresentou-se a mim como Senhor Borba.
  Veja só, minha senhora, que a estranha filosofia de tal criatura me fez condoer-me à situação humanitária, pois sabes bem que não estou preso a nada e muito menos a valores eleitos ou distribuídos por alguém, contudo não me considero filantropo e menos ainda um misantropo, estou entre um e outro; um pecador talvez. Aliás, após o nosso último encontro (de Sr. Borba e eu) não me preocupei com o tempo, deveras o deixei discorrer à vontade. Dialogamos sobre tudo, inclusive a respeito de sua - dita por ele mesmo – “Filosofia Humanita”, disposta em parábola interessante. Um dia lhe conto pessoalmente sobre essa história que relata a luta pela sobrevivência e a situação em que se fez das batatas prêmio maior aos vencedores... Por hora é isso. Seu afilhado do coração,
                                                                                                                                                                                            Fradique Mendes.

** Esse texto tem como pretensão ser um apócrifo (uma carta que não está publicada entre as tantas que Fradique Mendes escreveu). Como Eça de Queiroz e Machado de Assis viveram na mesma época, porém um em Portugal e outro no Brasil, pensamos em aproximar, se não os criadores, pelo menos as criaturas: Fradique e Quincas.
Ofereço essa produção ao amigo e poeta português (que é de fato português/lusitano), JORGE PIMENTA. Com o desejo que tenha feito uma leitura proveitosa, deixo aqui meu abraço!

sábado, 7 de maio de 2011

NÃO PERDEMOS... TORNAMOS-NOS ALBATROZES!

  Hoje percebi que não há grilhões densos o bastante para conter o espírito de um povo sabedor de seus direitos e indignado por ter que usar a força para, minimamente, garanti-los. A intensidade dos desafios ultrapassados – falo da greve dos funcionários público-municipais santa-cruzenses – e das lutas diárias cujo objetivo foi o de (re) encontrar a dignidade, teve, momentaneamente, suas asas aparadas; contudo não há quem possa ou tenha o poder suficiente para amputá-las definitivamente: elas voltarão a crescer... Semelhante ao albatroz baudelaireano preso ao convés da nau de seus algozes (onde tinha de respeitar o limite de apenas andar e, por conta disso, ser atormentado com risos e deboches por ser desajeitado no chão), também não suportamos mais o assoalho desse navio imundo, já que conhecemos juntos o CÉU e a envergadura das asas que temos para ganhá-lo. Abramo-las imponentes, pois o azul celeste nos provoca a alçar voos ainda mais altos; celebramos por, agora, sabermos disso e deixemos de ser humilhados por esses piratas que nos saqueiam e roubam-nos as “penas”...
  Enfim, confesso ao mundo que chorei, mas de orgulho dos albatrozes que voaram alto e resistiram comigo... Obrigado!

** Dedico esse pequeno texto a todos os colegas que tiveram a coragem e a sabedoria de unirem forças contra a arrogância ditatorial de nossos administradores munícipes. Cito também, em especial, – e é justo que o faça! – alguns amigos de luta: Rodrigo, pelo equilíbrio que nos uniu em um ambiente tomado por emoções e razões variadas; ao Mauro, detentor de uma sensibilidade rara em perceber a energia contida nos ritmos inflamados dos discursos; ao Adriano, o mais sóbrio e um dos mais sábios entre nós; ao Rafael, estudante de História e colega de trabalho (primeiro por ter vaiado o Dep. “To me lixando...”, em momento oportuno; segundo por ter me presenteado com um raro volume de Marcel Proust – magnífico!); e por último, mas não menos importante, ao nosso líder sindical, Almada, por ser o grande mestre dos discursos e nosso mais importante membro da causa.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

OS TEARES DA ESCRITA E A IMPORTÂNICA DE TECER**

  O tecido pode ser o melhor condutor para sentirmos que o prazer pode ser experimentado, também, através das pontas de nossos dedos... O mundo compreendido pelo tato pode fazer com que reflitamos sobre algo mais do que simplesmente o fim e a futura utilidade que o pano terá. O tipo de fio, a maneira como ele foi tramado e, enfim, a forma que tomou, contribuirá para que aprendamos sobre as várias texturas até que possamos, finalmente, poder tecer – fiando com nossas próprias linhas coloridas – uma “fazenda” (do verbo fazer) que o mundo olhará, sentirá e saberá que foi feita pelas nossas mãos.
  A construção de ideias utilizando-se das palavras é isso (não é à toa a relação: tessitum, tecido, textura, texto...). Ao lermos boas obras, fatalmente, sentiremos os seus veludos, desde um simples véu até as mais finas das sedas. É necessário primeiro senti-los para depois fazer-se sentir pelos tecidos produzidos dentro de nosso próprio tear.
  Para tanto devemos ter consciência de que para construir é necessário às vezes desconstruir. Peguemos o exemplo da rainha de Ítaca: todos conhecem – acreditamos – a história dessa grande personagem épica. Na voz de Homero, dentro da primeira parte da Odisseia, encontramos Telêmaco, (filho de Odisseu e Penélope, governantes de Ítaca) aturdido e assediado pelos pretendentes de sua mãe que já estavam de olho no trono. Todos sabem que Odisseu, após ter ajudado a conquistar Troia, passou muitos anos tentando voltar para casa. Seus compatriotas, naturalmente, já não acreditavam que um dia ele retornaria. Inclusive, algumas pessoas fomentavam a ideia de que a rainha deveria casar-se novamente, o que fez crescer o número de candidatos ao matrimônio e, em consequência, ao trono. Penélope, já sem argumentos, decidiu então que se casaria novamente, mas antes precisaria tecer uma mortalha em homenagem à memória de Odisseu. Ao mesmo tempo em que a obra ia tomando forma em suas tessituras diurnas, à noite, tomada por um sentimento de esperança de que o marido retornasse, a mulher desmanchava a mortalha para no dia seguinte retomar e ganhar ainda mais tempo. Contudo, sabemos que para alegria de Telêmaco e Penélope, Odisseu finalmente teve o tempo que necessitava para conseguir retornar e vencer todos aqueles que desrespeitaram sua família e seu reino.
  Na maioria das vezes, ao confeccionarmos nossos tecidos, precisamos desfiá-los e reformulá-los. O mais incrível é que, assim como Penélope, ganhamos tempo com isso, pois o processo que permeia a composição e a trama das linhas depende muitas das vezes em que nos propusermos a retornar ao ponto de partida. Insistirmos no processo, alheios à crítica dos toques, resultará em panos falhados e cheios de nódulos quebradiços à sensibilidade dos dedos que possivelmente os sentirão. Nesse momento, mesmo a contra gosto, devemos aceitar o ponto de vista e o tato de outrem e não ter medo de recomeçar, dessa vez, acertando melhor os pontos observados. Para os que creem que Penélope não chegou a lugar algum com sua paciência, pensem que na verdade ela confeccionava algo muito maior do que uma mortalha, ela tecia com o TEMPO na perca e no ganho de sua construção e desconstrução. Ao invés de uma indesejável mortalha, a rainha teve de volta tudo o que perdera, uma vez que se permitiu perder para, no final das contas, ganhar. Imaginem se ela terminasse esse tal pano dos mortos? Odisseu certamente teria mais uma epopeia para enfrentar. Ao invés disso, Ítaca acabou tornando-se um grande tear onde as boas novas acabaram sendo, no final, bem amarradas pelas linhas do tempo e pelas mãos hábeis da rainha de Ítaca, que conseguiu tramar um pano esplêndido e bem sucedido.
  Enfim, esclarecendo, ao contrário do que a grande maioria pensa, o ato de produzir um texto não está vinculado a alguma força divina que nos sopra aos ouvidos e nos vem inspirar. A palavra chave para uma boa produção textual é ‘trabalho’. Deve-se cultivar o hábito da leitura e submeter suas produções a releituras, a reescritas e – fundamentalmente – à crítica (pedir para que outros sintam a textura e apontem para os fios soltos que precisam ser concertados ou refeitos). Estes são alguns elementos que fazem parte dessa construção. A atenção a esses pontos é fundamental para que não se abandone o processo de estar sempre trabalhando com ideias que já se desenvolveu. Pois o texto, assim como nosso conhecimento de mundo, sempre está em constante transformação. E são todos esses elementos que vão dando forma e cor aos nossos tecidos.
  Agora, com posse da linha, é sentar, puxar um fio e começar sua trama...

** Texto reformulado, ampliado e revisto. Ofereço a todos os meus amigos da blogosfera, grandes tecelões. 

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O MORTO*

  Sentado na poltrona de sempre, lá estava ele de novo em seu refúgio. Óculos sobre o nariz, pernas cruzadas e um velho livro repousando aberto sobre suas mãos. Os olhos acompanhavam as palavras nervosamente enquanto a mão direita virava a página quando necessário. Dessa forma o tempo passava, até o sono aparecer de mansinho e oscilar entre a história e o sonho. Adormeceu... 
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  Deu uma boa olhada em volta e confirmou: estava sozinho. Em certos momentos, mesmo na boa companhia de sua esposa, tinha a necessidade de refugiar-se dentro de si, de modo que o espírito se emancipasse do corpo físico por alguns instantes. No entanto, no cômodo ao lado, um murmúrio quebrou o transe. Andou até lá.
  - Pobre coitado, como pode uma santa criatura nos deixar assim? Não tinha maldade, não bebia... Homem admirável!
  Assim que entrou na sala, ao ver as comidas e bebidas, não teve dúvidas em desfrutar daquele banquete e sentar-se ao lado das pessoas que também comiam. As carnes dos pastéis ainda estavam frescas, mas o vinho parecia intragável. A massa daquele bolo tinha um aspecto esbranquiçado, alvíssimo, talvez por não ter tido tempo de ser assado devidamente. Ficou furioso e desgraçou o péssimo cozinheiro.
  - Um ser humano educado, exemplar vizinho e sempre atencioso com todos. Sua nobreza era incontestável...
  Soltou o prato sobre a mesa e, surpreso, deparou-se com um caixão repousado bem no meio da sala. Chegou perto, contemplou o rosto do defunto e então percebeu que já o conhecia de algum lugar. Mas quem seria? Ao levantar a cabeça, acima do cadáver, deu de cara novamente com o rosto do falecido. Tratava-se de seu próprio reflexo reproduzido em um espelho antigo que adormecia por muitos anos bem no centro daquela parede.
  - Coitado, nem ao menos herdeiros deixou...
  - Dizem que morreu por causa de um Emplastro!
  - Emplastro?!
  Desconsolado, entendendo agora com clareza os fatos, retornou em passos lentos para o local de onde havia saído. As qualidades ficavam e os defeitos já estavam destinados a ir, junto ao corpo Santo, em direção à cova e aos vermes que os corroeriam lentamente. - Matamos o tempo; mas o tempo nos enterra - pensou. Acomodou-se novamente na velha poltrona e adormeceu.
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  - Joaquim, Joaquim**...
 Sem resposta ao chamado, Carolina***, deixando ele então descansar, apenas recolhe o livro abandonado sobre as pernas do marido, fecha-o e observa:
  - Hum, Memórias Póstumas de Brás Cubas...


* Com este conto fui premiado como primeiro cololocado no Concurso literário que comemorava os 100 anos da morte de Machado de Assis, os 100 anos de nascimento de Guimarães Rosa e Cyro Martins, pela UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul (2008).

** Joaquim Maria Machado de Assis.
*** Carolina Augusta Xavier de Novaes (foi esposa de Machado).