Suponhamos que nossas razões e emoções pudessem existir em dois corpos distintos. Chamaremos cada uma dessas partes de ‘Sancho Pança’ para a primeira e ‘Don Quixote’ para a segunda. Visto ser Pança um personagem gordo e que está totalmente calcado na relação com os elementos concretos do mundo (adora os prazeres da carne) e Quixote, ao contrário, exibe um físico magro e relações pouco preocupadas com a realidade física, podemos entender perfeitamente, neste caso, que o metafísico e o real estão literalmente divididos aqui em dois corpos diferentes. Miguel de Cervantes, o criador das criaturas, separou-os propositalmente de forma analítica – pelo menos em nossa leitura – para que pudéssemos perceber de maneira mais clara duas características da condição humana que, naturalmente, ocupariam um mesmo organismo/corpo. A intenção – cremos – não é de provocar ou insuflar uma situação maniqueísta (filosofia Persa que separa o bem do mal), mas provar que ambas são dependentes.
Acompanhemos a alegoria:
Imaginemos um balão cheio de gás e que toma altitude de acordo à vontade de outro SER que segura a corda que está amarrada ao bocal desse balão. Sancho, já que é pesado e tem relação segura e firme com a terra, aqui representará esse SER; e Quixote, magro e tido como sonhador, representará o balão. Todos sabem que tomando certa altura o objeto pode estourar e desaparecer, vide sua fragilidade. Daí então a importância de quem segura a tal corda, pois é ele quem regula o limite de subida dessa “bexiga”. A razão não sobrevive sozinha e a emoção, igualmente subordinada, também não. Mas seu fiel escudeiro, Sancho, em um momento de distração, afrouxa nosso suposto fio – o da medida/metrum – fazendo com que o balão, voando em uma altitude difícil de recuperar, escape às suas mãos, causando assim o rompimento e a desvinculação da razão com a emoção, o que explica a morte de nosso “Cavaleiro da triste Figura” ao final da novela. Enfim, não é possível que exista um sujeito essencial e exclusivamente racional ou emocional, somos as duas coisas, dependemos delas e nos equilibramos com elas. Cervantes há quase quinhentos anos (1605) já sabia disso, então nada aqui é novidade.
As versões “tele-novelísticas”, contudo, ainda insistem (em pleno século XXI) em querer nos convencer de que não é possível a incorporação das duas partes em uma. Fazem-nos crer que o protagonista e o antagonista ou a razão e emoção não podem coexistir em um mesmo personagem. Com isso acabamos entendendo que a parte que concerne ao “bem” deve ser tão doce que chega a atrair formigas e nos causar náuseas; e o “mal” tão negativo que representa a ruína total e o dissabor de um propósito inverossímil de humanidade.
Machado de Assis, em seu Dom Casmurro , nos prova essa tendenciosa prática em aceitarmos verdades impostas e unilaterais. A maioria dos leitores ao acompanhar os relatos de Casmurro, tende a cometer sempre o mesmo erro: condenar Capitolina como adúltera. Mas o que temos que levar seriamente em conta é que estamos sendo conduzidos pela voz do velho Bentinho, Dom Casmurro, e que não há imparcialidade em sua fala, portanto não podemos esquecer de controlar as memórias emocionais do personagem com os fatos racionais (uma vez que não conhecemos a versão de Capitu). Pensando nisso, não olhemos para os olhos de Capitolina com a mesma objetividade que Otelo (na desmedida entre razão e emoção), erroneamente, olhou para o lenço de Desdêmona. Permitamos nos achar e não perder-nos sob a ressaca provocada pela sutileza de um primeiro olhar. Encher a barriga com eles, do ponto de vista exclusivo de Bentinho (emocional), seria provocar uma tragédia semelhante ao que, injustamente, selou o destino da mulher do poderoso Mouro, Otelo. Peço que não cometamos o mesmo. Julgar uma possível traição objetivamente é não saber apreciar o senso dos sabores das bruxarias provocadas pela dúvida que fez amarrarem-se as duas pontas do tempo e da consciência de Bento.
Na mesma linha de raciocínio, Platão, em seu “Hípias Menor”, nos traz alguns questionamentos sobre o tema da mentira, em pensamentos conduzidos pela voz de Sócrates em discussão travada com um sofista chamado Hípias. Afinal quem é o mais mentiroso entre os heróis de Homero, Aquiles ou Odisseu? Claro, em sua extrema sabedoria, Sócrates prova ao pouco modesto Hípias que nem um nem outro devem ser escolhidos, uma vez que cada um deles faltou à verdade ao seu próprio tempo e necessidade. O que se deve levar em conta é que todos possuem, aglutinadas, as essências desses dois gregos homéricos: a força temperamental de Aquiles, representando a emoção; e a estratégia racional de Odisseu. Ambos, homens ou semideuses, propensos à corrupção.
Se quisermos novelas, leiamos as quixotescas e aprendamos a lidar com situações que explorem – em formatos mais inteligentes – toda a nossa complexa psique. Fujamos à esquizofrenia patológica de classificações definitivas, estereotipadas e ditatoriais. Abramos mais livros e, se acaso optarmos em abrirmos bíblias, tentemos não julgar os ateus como se fossem reencarnações de demônios mefistofélicos, pois ninguém é integralmente santo. Ninguém!
** Esse texto foi publicado no jornal Gazeta do Sul no dia 23 de maio de 2011 ( http://cronutopia.blogspot.com/2011/05/publicado-na-gazeta-do-sul-do-dia-23-de.html), mas reponho-o novamente como forma de homenagem a uma futura acadêmica das letras que levará consigo seu próprio volume de Quixote. Um abraço a minha querida Cigana Carmen (epíteto que adotamos nas aulas de Literatura para burlar seu nome de nascença, Sandra Borges, e autenticar o de renascença literária, Carmen) .
Espero que tenha apreciado essa leitura pretensiosa, querida!!! Abraços do Professor!!!