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sexta-feira, 2 de maio de 2014

(3ª parte) NOTAS DE DESACONTESSÊNCIAS: diálogos.

- Pai, tu pareces desencantado...
- Dá pra sentir?
- Sim, há alguns dias em que o Sr. chega assim, meio mal, meio pesado.
- Ah, filha, o mundo às vezes me engorda de tanto nada!
- E não há como emagrecer isso com um pouco de tudo?
- Quem sabe no dia em que meus pés não trouxerem as poeiras de fora. Trago sempre um boneco de barro que migra das solas para dentro de mim.
- Ai, pai, fica bem, deixe os bonecos secarem e depois racharem sozinhos. Não tente soprar vida neles. Sei que é um professor, mas deixe com que cada um seja do tamanho do mundo que acha que pode ser - não sopre balões furados. Assim vai ficar sem fôlego e preciso de ti para soprar os meus.


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- Filha, por favor, venha até aqui!
- O que é, pai!
- Está ouvindo isso?
- Sim, bonito...
- Sente as cores? A textura dessa voz?
- Espera... Sim.
- Não acha maravilhoso?
- Quem está cantando, pai?
- Ah, filha, essa é uma das vozes mais bonitas que já ouvi!
- Mas de quem é?
- Milton Nascimento: o melhorador de silêncios.

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- Mas tu só pensas nesses teus alunos?
- Não, penso em vocês também!
- Por que não desliga um pouco?
- Já pensou como seria se o coração desligasse?
- Tá bom, venceu. Continua. Desculpa!
- Ah, obrigado! Logo mais me vou. Só mais um pouco.
- Capaz. Só fiquei preocupada em te ver aí tão calado.
- Nada. Gosto de pensar que os silêncios me habitam.

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- É verdade que quem lê fica louco, pai?
- Sim, maluquinho!
- Então vamos ficar loucos?
- Claro! E isso não é bom?
- Bom? Ficar maluco é bom?
- Ah, filha! Loucura é pensar que as coisas acontecem de maneira ordeira dentro de nós.
- Como assim? Então a leitura nos bagunça?
- Sim, mas é para nos tornar lúcidos de nosso próprio caos.

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- Pai, lembra-se das humanidades que o sr. disse que temos?
- Claro, filha!
- Pois é, acho que andamos a perdê-las.
- Não entendi.
- É que não entendo por que temos apenas uma aula de Filosofia durante a semana. O senhor não disse que a Escola começou com os filósofos? Parece até que, aos poucos, estão matando quem os criou.
- (!!!)

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- É verdade que quem lê fica louco, pai?
- Sim, maluquinho!
- Então vamos ficar loucos?
- Claro! E isso não é bom?
- Bom? Ficar maluco é bom?
- Ah, filha! Loucura é pensar que as coisas acontecem de maneira ordeira dentro de nós.
- Como assim? Então a leitura nos bagunça?
- Sim, mas é para nos tornar lúcidos de nosso próprio caos.

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- Pai! Estou adorando as aulas de Filosofia.
- Ah, mas como isso me soa bem...
- O professor é muito bom – continuou empolgada.
- E sobre o que falaram?
- Mitologia Grega, eu sabia tudo.
- Ninguém sabe tudo, filhota!
- Mas daquilo eu sabia.
- Não, há mais coisas ali, inclusive um pouco de nós mesmos.
- Mas isso foi em um passado distante e Antigo, pai!
- Sim, um passado mítico que foi nosso avô. Sabe, filha, a Filosofia é nossa sábia mais idosa e quem é amigo dela, quem deixa os ouvidos cheios de olhos para ela – pode acreditar! – fica rico.
- Mas nós não somos ricos! Olhe em volta?
- Abra os olhos para dentro e perceba-se, menina... Sim, viu quantas vozes? É rica sim.

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- Pai, como é ser professor?
- Ah, filha, acho que há uma porção de professores dentro de um único professor! Como é ser um? Depende dos que temos que ser em cada espaço e tempo de aula, em cada afinação ou desafinação...
- Não entendi.
- Cada turma nos faz um. 
- Então os professores são múltiplos?
- Mais ou menos, digamos que cada espaço, cada grupo de pessoas nos construa diferentes.
- Então cada professor é na verdade uma multidão de professores?
- Quanta pergunta... Sim, acho que é isso!

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- Há muitas pessoas que gostam de gatos!
- Mas garanto que são todas sozinhas, solitárias!
- Todos somos...
- Eu não, não sou sozinho!
- Ah, pode não ser, mas está!
- Não, não estou!
- Entenda amigo: "todos nós estamos sozinhos por debaixo de nossas peles".
- E o que tem a ver o gato com isso?
- Não posso dizer ao certo, mas acho que eles têm algo que nos povoa a solidão, esses silêncios que carregamos por dentro!

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- O mundo me assusta, pai.
- A mim também!
- Há remédio para isso?
- Sim, criar outros e reaprender a se espantar.
- Lendo?
- Não. Deixando-se ler. Deixando-se habitar.

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- É verdade o que sempre diz, pai? Ou diz por dizer?
- O quê?
- Sobre aquilo de o sonho estar contaminado de futuro.
- Sim.
- Mas como é isso? Sonho tanta coisa!
- Natural. Quem sonha fica infestado.
- Infestado?
- É que tu pensas ser uma. Não. Cada sonho que temos se faz multidão. Somos as habitações deles, ao mesmo tempo em que eles são também as nossas, só que futuradas e cheias de ansiedade. Querem sair.

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- O que é ser bom?
- O que te faz bem?
- Sorvete.
- Sorvete é bom para todos?
- Não, tenho uma amiga que não gosta do sabor morango.
- Está aí: bom nem sempre é bom, pode ser mau também.
- E como sabemos?
- Não sabemos. Assim como o bem e o mal, somos complexos e cada um pode e é relativo ao exercitar pensamentos que parecem ser bons para si mesmo. E antes que pergunte: não, o resultado nem sempre é o que esperamos do outro. Isso é natural, ainda bem.
- E como posso agradar a todos, então?
- Esqueça. Nada pode atingir a todos. Pelo menos não como gostaria.
- Essa ideia parece dura, né pai?
- Bem dura, porém o gelo é também água congelada. 

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- Pai, o Nietzsche tinha um bigodão, né?!
- Se tinha.
- Eu acho nojento!
- Por quê?
- Imagine ele dando uma mordida num pão cheinho de nata por cima.
- Putz! Tem razão!

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- Mas tu não és o que diz ter sido!
- Nunca somos, porém é importante acreditarmos que fomos para continuarmos sendo.
- Então o que há contigo?
- Comigo nada. Tenho problemas com aquele que disse que eu não fui. É isso. Só fui apartado daquela outra fé!
- Com se fez isso?
- Ouça-se no que disse: 'tu não és’. E como posso querer ser alguma coisa se nunca fui coisa nenhuma? Talvez este de mim seja só uma semente que não pôde prosperar: um 'não-ser'. Minha força ainda existe, eu sei, sinto assim, só que a deram a outros que não moram em mim. Acontece. Ninguém disse que o mundo teria que ser justo. Tolice minha em sentir falta de acreditar-se existido.

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- Pai, posso pegar uma frase de seu livro do Pessoa para pôr em meu perfil?
- Claro, mas não se esqueça de onde ela veio. Diga que é dele e de qual livro tirou, pois respeitar as ideias dos outros é o princípio da decência para uma vida boa e de valor.
- Tá bom. Vou me lembrar disso!
- Mais uma coisa. Se gostar de mais alguma, pense, construa-se e ponha sua voz nela. Penso que assim, somadas as outras vozes que já carrega aí dentro, ela possa se renovar e, daí sim, se tornar tua.
- Entendi, pai!

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- Olha o aviãâââo. É de verdade ou de brinquedo, mãe?
- É de verdade.
- Acho que ele é bem grandão, né pai?!
- Sim, um dia vamos para Portugal em um desses.
- Onde fica esse Portugal, pai?
Pus a mãozinha dela em meu peito e respondi:
- Por enquanto é aqui filha!

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- Pai, a Malu comeu um passarinho...
- Onde?
- Ele bateu no vidro e caiu.
- Nossa. Capaz?
- Ela é ruim, né pai?
- Não, Carol, nós é que queremos que ela siga o código 'humano', desejamos humanizá-la. Ela é um gato, não esqueça disso. Não é ruindade, filha, é algo maior que grita dentro dela: é o instinto.
- Mas coitadinho do passarinho!
- Sim, mas precisa aprender a lidar com isso. Esta foi apenas um das verdades que precisa afinar. O mundo é cheio disso, respeite.
- Tá bom, pai!
(e sorriu...)

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- Pai, como se ouve música sem entender nada de música?
- Não sei bem, mas tente fechar os olhos e sentir seus sons como tons coloridos.
- E dá pra sentir?
- Bom, eu sinto. Tente você. Só que tente colori-las naquela sua tela...
- Tela? Qual tela?
- Aquela que tem vontades de janela e teima querer ser pintura de mundos...
- Explique direito: vontade, janela, mundo...
- Feche as cortinas, filha. Faça com que seus ouvidos vejam e sintam a textura da música... Não há fórmulas pra isso, é certo. Estou só a te dizer como funciona pra mim, já que me perguntou. Mas não há regras mesmo. Apenas, ouça, não escute, ouça. O escutar não basta, é preciso sentir ouvindo! Só isso.

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– O que anda fazendo da vida, amigo? Não te vejo mais por aí.
– Trabalhando, sei lá...
– Mas não gosta de sair?
– Gosto. Vou a todos os lugares.
– Esses seus lugares parecem pouco frequentados, hem?!
– Não, eles até estão bem habitados.
– Onde ficam? Sai pra onde.
– Fica aqui ó! (apontando para o peito).
– Ué?! Você sai para dentro?
– Também. Mas quando resolvo sair aí pra fora – o que faço pouco – sempre levo junto os habitantes de minhas interioridades!
– Cara, tu é estranho!
– Pode ser. Mas posso te pedir uma coisa?
– Peça, amigo!
– Quando se referir a mim diga vocês, no plural, tá bom?
– ????????????????????????????????????

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– O que é isso pai?
– É uma caixa de giz.
– Mas na minha Escola os quadros são brancos!
– Na minha são escuros. Por isso (de vez em quando) escrevo um poema neles.
– Por quê?
– Ora, para que as palavras nos arejem!
– Como assim?
– Pense em quando abre uma janela...

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- Pai, o que é democracia?
- É quando a verdade está no plural, filha!
- Plural? O que é plural?
- Quando somos livres para optar pelas cores que gostamos mais.
- E se existisse uma só cor? O que aconteceria?
- Já houve. Chamava-se ditadura.
- Ditadura?
- É quando alguém opta por uma verdade e não aceita outras cores. Acha que o azul basta e não aceita o verde, por exemplo.
- Ah, então quero que minha verdade seja um arco-íris.
- Tá bom! Confesso que eu também, filhota. Mas diga no plural: verdades.

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- Não vejo o som da leitura...
- E que som tem a leitura para ver?
- Aqueles de dentro. Os coloridos!
- Do livro?
- Não. Aqueles que se escoram na janela até cair no mundo.
- No mundo?
- Sim, as janelas têm uma sede de mundo bem barulhenta.

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- Pai, sabia que a Anne Frank queria ser escritora só para mudar o mundo?
- Escritores não mudam o mundo, filha.
- Não?
- Não. Eles criam novos mundos. Os leitores é que mudam cada um deles.
- Mas o mundo é só um, pai.
- Tu que pensas. O mudo são quantos quisermos que seja.

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- Pai, já notou que quanto tu sorri para as pessoas elas acham que tu não sabe nada?
- Mas eu não sei nada.
- Sabe sim. Vive me falando coisas.
- Quando teu mito cair e perceberes que teu pai é só um homem. Daí vais passar a sorrir para os outros também.
- Mesmo eles nos subestimando como fazem contigo? Sorrir mesmo assim?
- Sim, pelo menos até o mito cair para eles também.
- E quando vai cair?
- Quando nos observarem nos olhos e esquecerem de nossas bocas.
- E se sorrirmos com os dois: olhos e lábios?
- Daí todos seremos sábios!

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- Pai, eu tenho raça?
- Não, filha, tu és uma raça!
- Como assim?
- Porque cada homem é uma raça, já dizia Mia Couto.
- Então sou da raça das pequenininhas...
- hehehehehe.... Pode ser!

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- Pai, tô triste.
- Mas por quê?
- Meu Shakespeare está acabando.
- Pegue outro.
- Não, quero que esse dure mais.
- Fique tranquila, ele sempre continuará em ti.
- Mesmo que acabe?
- Sim. Porque ele nunca se acaba.

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- Mas já não leu esse livro?
- Ahã!
- Então porque está relendo?
- Não estou relendo, estou lendo.
- Mas não disse que já o leu?
- Sim. Mas esse foi o Eu de outro tempo.
- De quando?
- De quando só lia.
- Como assim?
- É que hoje me deixo ler, assim leio melhor o que aquele outro havia lido.
- Que outro?
- Aquele que fui Eu e aquela que foi um dia a obra que ele leu.

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- Ela se acha, pai.
- Então já se perdeu.
- Hã?
- Porque achar-se demais é perder-se em seu próprio escuro.
- Mas como?
- "Desachando-se".
- Hã?
- É a cegueira do ouvido...
- Cegueira do ouvido?
- Sim, quando se ouve somente para dentro.

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- Quantos seremos hoje?
- Vamos ver a soma até o final do dia.
- E ainda tem os de ontem, né pai?
- Sim e mais os da vida inteira.

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