Sempre me machuco
quando leio. Não que as letras representem espinhos perigosos e contundentes.
Minhas “machucações” vêm sempre da beleza provocada pelos ritmos e pelas
atmosferas inebriantes que alguns gênios literários provocam em mim. As
palavras são apenas um meio para chegar ao fim, que é nossa alma. O engraçado é
que essa gente utiliza-se de minhas próprias vozes e imagens para se mostrar
pelas fendas de cada um de seus silêncios – digo bem, silêncios, há muitos
silêncios, sempre me refiro a ele(s) no plural, não estranhem. Medo de parecer tão
frágil diante deles. Eles parecem ter a faculdade de tirar coisas de dentro de
mim, coisas que nem eu sabia que podiam estar por lá, nas entranhas.
Vejam bem, semana
passada li, entre outras coisas, “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Até ontem,
ao receber a notícia de que minha encomenda havia chegado à livraria, tive a
noção de que nada poderia ultrapassar esta última leitura (confesso!), muito
menos esta que me veio agora – ainda que, ao mesmo tempo em que esperava,
andava lendo “Guerra e paz”, aquela monumental obra de Tostói (vinho que bebo
devagarzinho, claro, a conta gotas para sentir melhor o sabor). Engano meu. À tardinha,
pouco antes de regressar ao trabalho, abro o dito livro e, novamente, fui
tragado. O primeiro conto era magnífico e tive a impressão de que aquele velho
pescador não estava tão solitário assim. Falo da obra “Dançar tango em Porto
Alegre”, de Sérgio Faraco. Livro que, já no princípio me pegou bonito por sua
essência universal – se é que posso dizer assim. Contudo, cito um trecho para
que se embebedem comigo:
“Ele trazia os joelhos
de encontro ao peito para se aquecer, pensava na mãe, que as mães não deviam
morrer tão cedo, na falta delas todo mundo parecia mais solito, espremido no
seu cada qual como rato em guampa.” Nossa! Quanta ternura encontrei nessas
palavras. Não sei como puderam tê-las traduzido, como acredito que foram. A
verdade é de todos, eu sei, mas me refiro ao refinamento, à forma, ao monumental
ritmo oral e nativo: vozearia legitimada de nossos pampas. “Um Guimarães Rosa
bem vivo” – pensei. Ousei, e naquela noite arrisquei uma frase que brotou de
uma palavra utilizada tanto por Rosa, quanto por Faraco: “Nonada, arma de
vivente é fia de muitas morte que fica fazendo casa na gente. Não precisa sabê
de letra pra entendê dessas morada. Arma é alma”, guri! – tal como dizia minha
avó.”.
Enfim, depois disso e como
da outra vez, fiquei na janela tentando me convencer de que aquele conto não
era de verdade, que se travava de ficção. Quando retornava para ele, relia
algumas partes que, insistentes, voltavam a me dizer: “Voltar para subir o cerrito
de pedra nos fundos do campinho, para atirar uma flor na cruz da velha morta,
de quem, agora mais do que nunca, sentia tanta saudade.”.
No outro dia (hoje) bem
cedinho, “deitei o cabelo” para casa de meus pais. Lá meu velho ostentava uma
cuia bem grande de chimarrão. Na varanda, minha mãe, mais viva do que nunca, me
saudou com um bom dia. Sim, o escrito de Faraco fez meus olhos se voltarem para
dentro e observar o quando eu ainda tinha. Valorizei. Fiquei até às onze horas
mateando e ouvindo as vozes de minha velha. Montei campo ali, ouvindo e
sofrendo em saber que um dia ela não estará mais conosco. E não, o conto não me
‘autoajudou’. Pelo contrário, serviu de catarse para que eu purificasse a sorte
que ainda tenho por não ser um guaxo na vida.
E as mães sempre com
esse poder de nos provocar saudades que ainda nem precisamos ter. Os que
precisam, chorem ao ler o primeiro conto de “Dançar tango em Porto Alegre”.
Permitam-se sofrer junto aos “Dois guaxos” (Mano e Ana), personagens que são
quase reais, mas advirto, precisam ser lidos por algum cantinho do coração:
aquele que também se permite ser lido.
Estou encantado.