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sábado, 19 de fevereiro de 2011

O MORTO*

  Sentado na poltrona de sempre, lá estava ele de novo em seu refúgio. Óculos sobre o nariz, pernas cruzadas e um velho livro repousando aberto sobre suas mãos. Os olhos acompanhavam as palavras nervosamente enquanto a mão direita virava a página quando necessário. Dessa forma o tempo passava, até o sono aparecer de mansinho e oscilar entre a história e o sonho. Adormeceu... 
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  Deu uma boa olhada em volta e confirmou: estava sozinho. Em certos momentos, mesmo na boa companhia de sua esposa, tinha a necessidade de refugiar-se dentro de si, de modo que o espírito se emancipasse do corpo físico por alguns instantes. No entanto, no cômodo ao lado, um murmúrio quebrou o transe. Andou até lá.
  - Pobre coitado, como pode uma santa criatura nos deixar assim? Não tinha maldade, não bebia... Homem admirável!
  Assim que entrou na sala, ao ver as comidas e bebidas, não teve dúvidas em desfrutar daquele banquete e sentar-se ao lado das pessoas que também comiam. As carnes dos pastéis ainda estavam frescas, mas o vinho parecia intragável. A massa daquele bolo tinha um aspecto esbranquiçado, alvíssimo, talvez por não ter tido tempo de ser assado devidamente. Ficou furioso e desgraçou o péssimo cozinheiro.
  - Um ser humano educado, exemplar vizinho e sempre atencioso com todos. Sua nobreza era incontestável...
  Soltou o prato sobre a mesa e, surpreso, deparou-se com um caixão repousado bem no meio da sala. Chegou perto, contemplou o rosto do defunto e então percebeu que já o conhecia de algum lugar. Mas quem seria? Ao levantar a cabeça, acima do cadáver, deu de cara novamente com o rosto do falecido. Tratava-se de seu próprio reflexo reproduzido em um espelho antigo que adormecia por muitos anos bem no centro daquela parede.
  - Coitado, nem ao menos herdeiros deixou...
  - Dizem que morreu por causa de um Emplastro!
  - Emplastro?!
  Desconsolado, entendendo agora com clareza os fatos, retornou em passos lentos para o local de onde havia saído. As qualidades ficavam e os defeitos já estavam destinados a ir, junto ao corpo Santo, em direção à cova e aos vermes que os corroeriam lentamente. - Matamos o tempo; mas o tempo nos enterra - pensou. Acomodou-se novamente na velha poltrona e adormeceu.
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  - Joaquim, Joaquim**...
 Sem resposta ao chamado, Carolina***, deixando ele então descansar, apenas recolhe o livro abandonado sobre as pernas do marido, fecha-o e observa:
  - Hum, Memórias Póstumas de Brás Cubas...


* Com este conto fui premiado como primeiro cololocado no Concurso literário que comemorava os 100 anos da morte de Machado de Assis, os 100 anos de nascimento de Guimarães Rosa e Cyro Martins, pela UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul (2008).

** Joaquim Maria Machado de Assis.
*** Carolina Augusta Xavier de Novaes (foi esposa de Machado).

domingo, 13 de fevereiro de 2011

AS MÃOS DE EURÍDICE, de Pedro Bloch

  “Não despreze estes livrinhos antigos. Este traz uma cômica tradução de vida.”
  Essa foi a frase que encontrei logo no início de uma obra esquecida e amarelada nas tristes prateleiras de um “sebo”. Um livrinho, como na dedicatória, de uma edição bastante antiga e que conta, em um monólogo dividido em dois atos, as frustrações de Gumercindo Tavares – personagem fascinante.
  Ao tê-lo resgatado pela ridícula bagatela de R$ 1,50, (juntamente com “A Morte de Ivan Ilitch”, de Léon Tolstoi, R$ 4,00; e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, por R$ 5,00) nada me faria desfazer-se desse fascinante ‘pocket’, pois a vida tragicamente cômica corre solta nos relatos e nas entranhas de nosso incrível protagonista, Gumercindo. Mas incrível mesmo é o que se pode fazer com apenas R$ 10,00 em um “sebo” (ganhando, inclusive, um desconto de R$ 0,50. Podem acreditar!).
  Ao ser enfeitiçado pela dedicatória, conforme explicito no início desse relato (confeccionada e assinada por Carmen Hech – e é justo citá-la, mesmo sem conhecê-la), não tive dúvidas em degustar o trabalho de forma a tentar interpretar, em voz alta, o que exigia cada cena. A espontaneidade, conforme o ritmo ia se estabelecendo, logo se transformou em uma prática que ia além de uma simples tentativa interpretativa, tornou-se, aos poucos, visceral, simbiôntica... A história, metaforicamente enredada pelo mito de Orfeu e Eurídice, ganha forma em ambientação contemporânea e um formato metonímico (a parte pelo todo), forçando-nos a conhecer as mulheres da obra, apenas, através de restritas descrições de suas mãos, primeiramente, a amante, Eurídice, e em uma outra intenção, mais para o final da obra, transmudar-se para Dulce (esposa de Gumercindo).
  No mito grego, Orfeu, dotado de dotes musicais herdados de seus pais, Calíope (uma das nove musas) e Apolo (deus Olímpico), consegue convencer Caronte a levá-lo ao mundo subterrâneo de Hades, onde se encontra Eurídice. Uma vez lá, depois de ter negociado com o deus – que só ouvi-o por conta de seu belo desempenho musical – deixou que a tão desejada Eurídice fosse embora com ele. Mas não foi tão simples assim, a condição obrigava-o a não voltar o olhar para trás, senão sua amada tornar-se-ia poeira voltando para o seu destino: a morte.
  Em “As mãos de Eurídice”, de Pedro Bloch, não foi diferente. Contaminado pela jogatina e perturbado com a beleza de Eurídice, Gumercindo, deixa esposa (Dulce) e filhos, levando todas as economias da família, para seguir para Buenos Aires e gastá-las nas roletas de cassinos platinos em companhia – é claro! – de sua amante. Naturalmente o dinheiro acabou, pois as mãos de Eurídice perdiam-nos “graciosamente”. Quando tudo se transformou em poeira, a amante também se foi, dando margem para o protagonista refletir e voltar para casa depois de longos sete anos (referentes aos sete pecados capitais).
  Sabendo que a literatura, em uma visão particular, nada mais é do que o olhar sensível de alguém no mundo. Podemos perceber, na história como um todo até a idiossincrasia de um único sujeito (o autor), elementos que nos permitem refletir sobre a complexidade do homem e o impacto de suas atitudes no mundo.
  Quanto ao autor, Pedro Bloch (1914-2004) – além de dramaturgo – foi médico, jornalista, compositor, poeta e autor de várias obras infanto-juvenis. Sua família era oriunda da Ucrânia, mas Bloch naturalizou-se brasileiro. Chegou, inclusive, a lecionar na PUC do Rio de Janeiro. Seus trabalhos como escritor soma-se em um acervo de mais de cem livros, grande parte destinada ao público infanto-juvenil. Dizem que muitas de suas obras foram inspiradas por crianças enquanto clinicava como médico em determinado momento de sua vida.
  Contudo, esse é um trabalho maravilhoso e digno de ser vislumbrado em um teatro com um ator a altura. Difícil é traduzir com palavras todo o encantamento provocado por essa excelente pintura da vida. Trabalho Inefável, inquietante, simplesmente um achado em meio a traças que corroem e mal tratam todo um acervo de clássicos deixados para trás pela moderna e sufocante preferência por “obras menores” – falo dos ‘best-sellers’ – que nos furtam a possibilidade de um caráter catártico de descobertas verdadeiramente humanas.
  Gostaria que todos sentissem um pouco do que senti ao lê-lo. Espero que, assim, nas vísceras de todos os leitores curiosos, a obra se torne um elemento de autorreflexão e prazer. Procurem-na, leiam e entendam o meu estado...
  Isso é tudo!!!