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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

REDES SOCIAIS: SOLIDÃO MODERNA

Gosto do Facebook, às vezes ele me parece uma versão atualizada da Ágora grega; em outras, não. Bem democrático, mas como em tudo na vida, é preciso que nos afinemos para este instrumento. Confesso que já toquei canções bem tristes nele, algumas belas, até. Produzi acordes ruidosos, destoantes; outros, pouco mais sensíveis e harmoniosos. Tudo depende – como eu já disse – de nossa afinação. Bom que somos humanos, agora contando com uma janela aberta para toda e qualquer emoção. Com ele fica difícil se esconder de nós mesmos.
Por outro lado, ele (o Facebook) tornou-se uma maneira moderna de solidão: nele estamos todos juntos e ao mesmo tempo sozinhos. Medida que, dependendo da circunstância, não parece ser tão ruim. Sempre nos povoamos por lá. Cada um com a sua vida, e todas elas à deriva na terceira margem de um mesmo rio. Sim, estamos cheios de lonjuras, as mais distantes sempre estarão dentro da gente. Com isso a felicidade ganhou cara nova, ela é uma saudade do que foi sem ter partido: é uma rede social, porque dentro dela ninguém parte, mesmo tendo que ir.  
Entretanto, sabemos que o mundo lá de fora acontece diferente dentro de cada um de nós... Tudo está no plural. Nas redes, inclusive, ‘sozinhamos’ em coro, em centenas de vozes. O que é perigoso, já que as palavras se esticam nos arcos e, quando projetadas por arames tortos, acabam perdendo o rumo e atingindo um passante qualquer naquela multidão virtual. Natural, a escrita tem vontade de se reconstruir pelas vozes dos outros. Local onde as bocas são os dedos e os olhos têm ouvidos. E aí é, justamente, que mora o perigo. Uma verdade confusa de ouvidos fica bêbada de si mesma. Os pensamentos afogam as vozearias e a nós mesmos, se não soubermos nadar entre as correntes do vai-e-vem de tantas diferenças.  
Mas também há a interação positiva, politizada, poética... há tudo, uma vez que as linhas de uma boa postagem constroem tecidos bonitos para os que gostam de andar bem vestidos por dentro. É a melhor maneira de encontrar-se com todos sem precisar estar com ninguém. O mundo corre muito, hoje em dia. Contudo, cuidado! Somos escravos do que dizemos e reféns do que não falamos: o afogamento é iminente.
Enfim, sem mais delongas, nem sempre importa o que os olhos pensam que sabem – competência instantânea e insípida do tipo Nescafé. Às vezes, desacelerar é preciso. Isso dá até certa saudade do cafezinho que minha avó demorava a passar. Valia o tempo, o cheiro e o gosto, pois sabor e saber são cores impossíveis quando damos exclusividade à visão. Nem todos os sentidos sabem se completar à distância. Mas isso foi no tempo em que a realidade prevalecia e os dedos sentiam outras mãos, além do teclado. Já foi. 

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

AFINADOR DE SILÊNCIOS

Construí minha formação pela enxada e com os livros fiz minha casa: hoje sou rico, tenho um sítio lavrado por inquietações.

Há tempos, quando o primeiro livro sentou-se sobre o meu colo, descobri o que cobria minhas pernas: ele (aquele livro) precisava de minha voz para acontecer, para andar. Naquele instante foi me caindo a ficha: eu, antes de tudo, precisaria aprender a existir. Então, para tanto, morri. Renasci. Despertei. E como criança que aprende os primeiros passos, passei a engordar uma nova vida, pois só existi de fato no exato momento em que me dei conta de minha própria existência – quase como um parto de mim, feito por mim mesmo. Contudo, não houve funeral para os que matei, eles continuaram a me acompanhar nas entranhas. E aos poucos fui percebendo que eram os silêncios, eram eles que na verdade tentei enterrar.
No entanto, somente anos mais tarde foi que consegui afiná-los (os silêncios) para que retornassem. Uns Lázaros é o que se tornaram. Daí decidi que precisava deles. E até hoje estou aprendendo a fazer desses ex-mortos uma orquestra bem viva, já que ando encontrando afinações para musicá-los, para pô-los em ordem aqui por debaixo da pele.
Mas é difícil administrar tudo isso sozinho. Entre tantos, foi um escritor lá de outros longes (de Moçambique) que me ensinou a ouvir melhor os ‘pertos’. Ele me mostrou que o silêncio sempre esteve no plural – diz-se silêncios. Sim, eles são muitos e vivos, tal como cada um de nós é uma multidão inteira, uma raça inteira, uma legião estrangeirada pelos tempos que vão construindo e desconstruindo os muitos que vamos precisando ser. E quantos não fomos para sermos estes? Concordo com Mia Couto (este é o moçambicano que falei acima): “A vida é feita de pequenas mortes”.  
 Dos ‘antes’ (dos de mim sem leitura) não houve culpados, não houve nada, o dia é feito por escuros se não abrirmos as janelas. Elas só podem ser abertas por dentro. Por isso não culpo a vida, nem a ninguém. Sei o quanto é difícil saber ouvir tantos silêncios de uma só vez, já que um livro é como uma caixinha de música. Só que ao invés de abri-la, precisamos nos abrir primeiro. Parar. Escutar. 
 Por outro lado, ler não é tão bom assim. Lendo, os olhos se clareiam para os escuros que te faziam tropeçar. E quantas pernas estendidas nos derrubaram em meio a uma vida toda de breu... Até tenho saudade da cegueira. Doía menos cair sem saber em que pé tropeçou. Mas o bonito mesmo é quando ressurgimos em outras vozes e em outras canções. Ouçamos aqueles livros silenciosos, pois “o silêncio é música em estado de gravidez”, como quer Mia. E, sim, o parto sempre dói. Não se engane. 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

ATÉ FUI FELIZ...

Todos somos tocados pelos próprios tambores.

     Alguns amanheceres carregam aquele azul bonito que contrasta com o verde de nossa grama. Difícil é abrir-se para a janela e contemplar tamanha pintura. Os dias são tão rápidos que quase nem sobra tempo para espiarmos direito essas coisas. Mas hoje parei. Fui mais devagar. Abri as venezianas, debrucei-me preguiçosamente e deixei o mundo se colorir. Os gatos, ao me verem assim, largaram seus banhos de Sol e pularam para dentro. Como na mesa ficam os livros que estou lendo e esta é encostadinha à ventana (não quis repetir janela), sempre ponho um jornal velho sobre cada um – sabem como são os bichanos, apesar de adoráveis, deixam pegadas bem feias encima das capas. Enfim, parece bobo de minha parte, mas por alguns instantes até fui feliz.
     Agora à tarde decidi ir até a frente da casa. Quando percebi que a poeira levantada por aquele ventinho moderado e tristonho bagunçou também minhas memórias. Senti-me sozinho, confesso. Olhei para o monte de telhados se horizontando à minha frente e me dei conta de que casas são apenas casas, nem sempre moramos nelas, mas construímos bastante. Sei bem que as verdadeiras nos acompanham: elas moram dentro da gente. Sim, algumas tardes escondem um monte de recordações. O Sol forte. O destempero dos ‘aléns’ que dançam nas distâncias. Tudo isso me fez visitar o garotinho sem medo da vida, sem medo de amar. A habitação veio para fora e me morou por algum tempinho. Naquele momento parei de crescer, de envelhecer. Fiz o caminho inverso. Virei criança... e ao som do motor de um carro passageiro, acordei. Olhei em volta e me dei conta de que não dava para voltar. Ah! Por alguns instantes até fui feliz.
     A noite esvazia o dia para dentro da gente, ela acontece para clarear nossos escuros. Os silêncios vão se soltando para que, tranquilos, os pensamentos possam tricotá-los sem embolar. Para afinar todos eles é preciso desamarrá-los e reorganizá-los em um único e colorido bordado, pois as palavras revelam mundos que nem quem escreve é capaz de ver. Ah! Como é bonito esse teto arejado por estrelas. O anoitecer é como um cantinho escuro onde entulhamos nossos pensamentos. Sem ordem certa, pegamos um de cada vez e vamos organizando e separando conforme dá. O dia passou. O tempo passou. Só nós continuamos aqui a tricotar lonjuras. Por isso tirei os sapatos e fui caminhar na grama. Como o verde, antes clarinho, passou a musgo? Mas nossos pés não se enganam. Sentem tudo que há para sentir. Uma espécie de conexão com o mundo, com as coisas e consigo próprios – e ali, por alguns instantes, até fui feliz!
     Ufa, que dia! 

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

QUE HORAS ELA VOLTA?

Escuro. O Avental saía cedo. Não tinha carro. Só pernas para ganhar estradas. Sempre limpinho e correto, nunca atrasou um só dia no trabalho. Nem mesmo o Sol encontrava forças para acompanhá-lo, o madrugador iluminava os caminhos com outro tipo de luz: o da necessidade. Chegava. Preparava o café. Vestia os filhos dos outros. Levava-os à escola... Vivia o invisível. Pano vazio. Descarregado de gente.  
Contudo, não era raro receber roupas usadas de seus patrões. Quanta caridade! Que prazer redentor encontravam nisso. Seus restos vestiam as crianças da tal criatura. Sorriam. Vão todos para o céu por excesso de generosidade.
Enquanto filho do Avental (ele carregava minha mãe), passei a infância vestindo descartes, e não estou falando do filósofo René Descartes, este vesti mais tarde. Brinquedos quebrados, camisetas surradas e sem cor... Gente muito boa. Muuuuuuuito. Bah! Mas nunca me enganei, essa ‘bondade’ sempre foi clara para mim. Definitivamente, ao contrário do que afirmavam, minha “velha” não pertencia a nenhuma daquelas famílias que trabalhou (dizer isso fazia parte das doações, já que, em alguns desses lugares, almoçava só depois de alimentar os cachorros).
Um dia, inclusive, braba comigo, minha irmã bradou: “se não parar de incomodar, a mãe vai ficar morando na casa do Seu X.” Nossa! Sofri por uma tarde inteira por conta disso. Sentei no chão poeirento. Olhei para a rua. Estava tanto calor naquele dia que o horizonte chegava a movimentar-se nas distâncias para alimentar consideravelmente meus vazios. Aperta-me o coração precisar recordar dessa pequena tristeza de verão – já havia esquecido. Sim, o que uma criança vê, esquecemos. Natural deixarmos guardados os olhos daqueles meninos que fomos. “A que horas ela volta? Mãeeeee...”.
Enfim, aprendi a ouvir as pequenas histórias, mas necessito de, ainda, mais barbas brancas para poder contar direitinho. Só sei escrever vivendo, sentindo. E é preciso ser velho para ter vivido algumas dessas grandes "pequena-ações".
Para encerrar, preciso dizer: este texto faz parte de algumas memórias engordadas por conta de um filme que assisti ontem à noite: “Que horas ela volta?”. Obra protagonizada por Regina Casé, arrasando na atuação. Película excelente. Bela crítica social. Definindo em uma só palavra: necessária. Como puderam ler, o longa-metragem arrancou-me dos dedos os silêncios antigos e a emoção de um reencontro catártico e surpreendente com o avental de minha mãe. Espero ter conseguido passar direitinho o que senti.
O que mais posso dizer? Assistam, ora! Percebam essa beleza.  

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A PRAIA DAS MIL E UMA NOITES: UMA CRONIQUINHA DE VERÃO

Desde pequeno, geralmente no mês de janeiro, sempre embarcávamos para a praia. Naquele tempo, quando garoto, as excursões ganhavam estradas mais distantes e sofisticadas – eram organizadas por conhecidos de meus pais (e pena: estranhos a mim); hoje, não tão ambiciosas, as viagens receberam um ‘quê’ pouco mais familiar, pelo menos no que se refere à proximidade. Sim, financeiramente tornaram-se menos poderosas, confesso. Contudo, o tempo curto de estadia se alonga mesmo é pelos abraços de bons braços de pessoas que convivemos na vida. Quero dizer: companhias pouco mais lúcidas para cada um de nós.
Assim foi o mais recente dos passeios...
Passada a jornada e já no litoral, alguns aproveitaram o banho de mar; outros, a areia, as partidas de bocha, o frescobol e os pontos locais de caipirinha (porque ninguém é de ferro); enquanto isso, determinado grupo foi logo bater pernas pelo centro da cidade. Pois é. Desassossegado, ‘caronei-me’ no terceiro (os batedores de pernas) e, chegando lá, esperei com paciência enquanto minhas filhas escolhiam seus suvenires. Crianças esticam o tempo, mas percebemos em seus olhos que tudo não passa de um flash, de tão ligeiro. Só que também tenho outra maluquinha em casa, uma leitora, e dando mais uns passos, pronto, encontramos nosso oásis: uma pequena livraria. Está certo, temos livrarias em toda parte, porém, no espírito dali, entrei procurando suprir aquela fome de “precisar folhar”.
Nessa fuga, observando os títulos, minha menina e eu, acabamos encontrando um vendedor bem faceiro do tipo contador de histórias, vendeiro muito legal. Ali ele nos mostrou tudo, parecia conhecer cada livro, cada gosto, quando... “Olha pai, quero este!” “Claro, filha!” E sobre uma estante alta, bem acima dela, observei uma caixa. “As mil e uma noites? Não acredito”. “Sim, estou lendo” – e sacou o primeiro daqueles quatro volumes, não o embalado, mas um seu. “Passei anos procurando esta obra, meu amigo. Esta aí agora é minha”. “Pode pegar, te dou de presente.” – vozeou por entre as falas, minha esposa. Pronto! A filhota saiu com o seu, e eu com o meu embaixo dos braços.
Passeamos mais um pouco e, já na pousada, comecei minha leitura. Ah, não acreditava que a ‘coisa’ era bem maior do que havia previsto. O artigo inicial do primeiro dos quatro livros demostrou o tamanho do mundo que eu estava por adentrar. Ao mesmo tempo em que acompanhava aquelas linhas, uma paixão ia me assolando. Fui lendo como se estivesse faminto. Entendi/senti o desespero do rei Sãhriyãr por conta da traição de sua mulher. Sentei-me com os dois, com ele e com Sherazade e... Nossa! Tudo pareceu tão perto e real. Uma pena que estava cansado da caminhada, e cochilei...
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(...vi aproximar-se um Gênio terrível. Subi apressado em uma árvore. De uma caixa que carregava a sete chaves, saiu uma mulher. Estavam bem abaixo de mim. Desencaixando-a, ele dormiu. A moça, em seguida, me pediu para que a desposasse ali mesmo, do contrário, convicta, acordaria o monstro para me matar. Fiquei assustado e não pensei duas vezes. Fiz...)
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“Dormindo, Dilso?!”.
Todos haviam retornado da praia. Pus um marcador na página, e respondi: “Vou caminhar um pouco, está quente aqui, não?!” – e fui mesmo, sorrindo por ter me dado conta de ter se tratado de um pesadelo mestiçado por aquela ficção.
“Que sonho!” – pensei. 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

E SE EU FOSSE UMA VASSOURA?

Palhas bem amarradas com arames ao redor de um bastão fino. Não sou nada sem essa trama. Sem a palhoça de minha saia, lamento não passar de um pedaço pelado de madeira. Mesmo assim, depois de vestida, tuas mãos refesteladas ainda precisam abraçar minha cintura e iniciar uma dança necessária – sem esse ritual estou morta ali no cantinho. Ah, adoro quando teus dedos já vêm me tateando para a nossa corriqueira valsa. O dia, a semana, o ano... nenhum deles acaba se não dançares comigo. A casa precisa estar limpa, eu preciso viver e tu precisas de meu balé arrastado de ‘limpa-chão’, de reinício.
Contudo, preciso dizer: detesto quando trazes as poeiras da rua. Às vezes te sinto tão pesado, amor! Até os banhos demorados parecem ignorarem essa penosa gordura. Daí sinto-me impotente, incapaz, invisível, enfim. Se teu ano foi difícil é porque não soube botar pra fora a terra fina que te pesou tanto. Olha pra mim, estou aqui sempre pronta para despoluir nosso lar. Tu permites demais a entrada das coisas de lá. Sim, preciso que valseies. Deixa eu te conduzir desta vez, te limpar. Levanta a cabeça, menino! O piso ainda conserva a terra fina do que já passou. Não quer misturá-la ao ‘porvir’, quer?
Querido, o que tens? Baila. Não me deixes esquecida por detrás desta porta. Gaste meu vestido. Minha durabilidade é vazia se não me gastares. Que eternidade é essa? Recuso-me a conservar-me nova desse jeito. Meu grito se perde. Permitas te levar, mesmo que logo me troques por excesso de uso. Desejo é morrer dançando, ‘infinitar’ um tempo pronto para receber as imagens de teus pés sobre o piso limpo, de teus suspiros ao perceber que as sujeiras do mundo ficam pouco tempo por aqui.
Pena, ultimamente só vejo tristeza. Os espelhos do chão estão opacos. Como receberemos um ano novo se o velho ainda nos ofusca? Estou cansada de te perceber ali sentado naquele sofá debochado. Force-se a pensar, mas se fores sonhar, sonhe com nossas tardes de outono, de grama cortada e de folhas secas sendo varridas ao som de meu saiote e do vento sussurrado pelo poeta. Lembras? “O vento varria as folhas/ O vento varria os frutos,/ O vento varria as flores...”.
Agora acorda. Precisas voltar pra mim. O silêncio anda ‘desacontecendo’ a nós dois. O réveillon já se fogueteou e ainda nem sequer terminamos de tirar a grossura passada do chão. Ruim acompanhar tuas pegadas em meio a tanta terra deixada pelos “ontens”. Desperta, amor! Está passando da hora de bailarmos uma nova canção...