Construí
minha formação pela enxada e com os livros fiz minha casa: hoje sou rico, tenho
um sítio lavrado por inquietações.
Há tempos, quando o primeiro livro sentou-se sobre o
meu colo, descobri o que cobria minhas pernas: ele (aquele livro) precisava de
minha voz para acontecer, para andar. Naquele instante foi me caindo a ficha:
eu, antes de tudo, precisaria aprender a existir. Então, para tanto, morri. Renasci.
Despertei. E como criança que aprende os primeiros passos, passei a engordar
uma nova vida, pois só existi de fato no exato momento em que me dei conta de
minha própria existência – quase como um parto de mim, feito por mim mesmo.
Contudo, não houve funeral para os que matei, eles continuaram a me acompanhar
nas entranhas. E aos poucos fui percebendo que eram os silêncios, eram eles que
na verdade tentei enterrar.
No entanto, somente anos mais tarde foi que consegui
afiná-los (os silêncios) para que retornassem. Uns Lázaros é o que se tornaram.
Daí decidi que precisava deles. E até hoje estou aprendendo a fazer desses ex-mortos
uma orquestra bem viva, já que ando encontrando afinações para musicá-los, para
pô-los em ordem aqui por debaixo da pele.
Mas é difícil administrar tudo isso sozinho. Entre
tantos, foi um escritor lá de outros longes (de Moçambique) que me ensinou a
ouvir melhor os ‘pertos’. Ele me mostrou que o silêncio sempre esteve no plural
– diz-se silêncios. Sim, eles são muitos e vivos, tal como cada um de nós é uma
multidão inteira, uma raça inteira, uma legião estrangeirada pelos tempos que
vão construindo e desconstruindo os muitos que vamos precisando ser. E quantos
não fomos para sermos estes? Concordo com Mia Couto (este é o moçambicano que
falei acima): “A vida é feita de pequenas mortes”.
Dos ‘antes’ (dos
de mim sem leitura) não houve culpados, não houve nada, o dia é feito por
escuros se não abrirmos as janelas. Elas só podem ser abertas por dentro. Por
isso não culpo a vida, nem a ninguém. Sei o quanto é difícil saber ouvir tantos
silêncios de uma só vez, já que um livro é como uma caixinha de
música. Só que ao invés de abri-la, precisamos nos abrir primeiro. Parar. Escutar.
Por outro
lado, ler não é tão bom assim. Lendo, os olhos se clareiam para os escuros que
te faziam tropeçar. E quantas pernas estendidas nos derrubaram em meio a uma
vida toda de breu... Até tenho saudade da cegueira. Doía menos cair sem saber
em que pé tropeçou. Mas o bonito mesmo é quando ressurgimos em outras vozes e
em outras canções. Ouçamos aqueles livros silenciosos, pois “o silêncio é
música em estado de gravidez”, como quer Mia. E, sim, o parto sempre dói. Não
se engane.
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