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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

AFINADOR DE SILÊNCIOS

Construí minha formação pela enxada e com os livros fiz minha casa: hoje sou rico, tenho um sítio lavrado por inquietações.

Há tempos, quando o primeiro livro sentou-se sobre o meu colo, descobri o que cobria minhas pernas: ele (aquele livro) precisava de minha voz para acontecer, para andar. Naquele instante foi me caindo a ficha: eu, antes de tudo, precisaria aprender a existir. Então, para tanto, morri. Renasci. Despertei. E como criança que aprende os primeiros passos, passei a engordar uma nova vida, pois só existi de fato no exato momento em que me dei conta de minha própria existência – quase como um parto de mim, feito por mim mesmo. Contudo, não houve funeral para os que matei, eles continuaram a me acompanhar nas entranhas. E aos poucos fui percebendo que eram os silêncios, eram eles que na verdade tentei enterrar.
No entanto, somente anos mais tarde foi que consegui afiná-los (os silêncios) para que retornassem. Uns Lázaros é o que se tornaram. Daí decidi que precisava deles. E até hoje estou aprendendo a fazer desses ex-mortos uma orquestra bem viva, já que ando encontrando afinações para musicá-los, para pô-los em ordem aqui por debaixo da pele.
Mas é difícil administrar tudo isso sozinho. Entre tantos, foi um escritor lá de outros longes (de Moçambique) que me ensinou a ouvir melhor os ‘pertos’. Ele me mostrou que o silêncio sempre esteve no plural – diz-se silêncios. Sim, eles são muitos e vivos, tal como cada um de nós é uma multidão inteira, uma raça inteira, uma legião estrangeirada pelos tempos que vão construindo e desconstruindo os muitos que vamos precisando ser. E quantos não fomos para sermos estes? Concordo com Mia Couto (este é o moçambicano que falei acima): “A vida é feita de pequenas mortes”.  
 Dos ‘antes’ (dos de mim sem leitura) não houve culpados, não houve nada, o dia é feito por escuros se não abrirmos as janelas. Elas só podem ser abertas por dentro. Por isso não culpo a vida, nem a ninguém. Sei o quanto é difícil saber ouvir tantos silêncios de uma só vez, já que um livro é como uma caixinha de música. Só que ao invés de abri-la, precisamos nos abrir primeiro. Parar. Escutar. 
 Por outro lado, ler não é tão bom assim. Lendo, os olhos se clareiam para os escuros que te faziam tropeçar. E quantas pernas estendidas nos derrubaram em meio a uma vida toda de breu... Até tenho saudade da cegueira. Doía menos cair sem saber em que pé tropeçou. Mas o bonito mesmo é quando ressurgimos em outras vozes e em outras canções. Ouçamos aqueles livros silenciosos, pois “o silêncio é música em estado de gravidez”, como quer Mia. E, sim, o parto sempre dói. Não se engane. 

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