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domingo, 26 de maio de 2013

“A GUERRA DOS PALHAÇOS”, DE MIA COUTO: UMA LEITURA

Dois palhaços discutiam. Entre um passante e outro, os ritmos começavam a desacelerar. Uns paravam para assistir a quebra da rotina. Outros continuavam a ‘rotinar’. Mas o fato é que tudo ia esquentando e se ‘empovoando’. A conversa, inclusive, começou a tomar falsas formas pelos ares. Golpes iam sendo desferidos de maneira que não encontrassem vítimas, só zunzunares. Dia-a-dia, os homens pintados pintavam também os transeuntes, não de forma literal, rápida, mas gradual, moral. Inclusive – lá pelo quinto dia – um dos palhaços resolveu munir-se de um pau. Então, em um cênico golpe ‘mentirosoferido’, o outro se abaixou e acabou acertando um espectador. Este, claro, foi à forra e acertou outro que enfureceu mais outro e o mundo se desfez. Um mês, e todos haviam morrido, menos os palhaços que foram procurar outra cidade para “empalhaçar”.
Um espaço público. Em meio a tudo, dois palhaços. Mas o que estaria errado por alí? Justamente eles (os palhaços). Como? É porque discutiam ‘ninharices’ e de forma tão séria para duas figuras como aquelas? Ainda mais em um ambiente de trânsito intenso onde ‘transeuntavam’ pessoas ‘normais’. Obviamente temos uma inquietação que desenrola o novelo das ironias por aqui, mas o fato é que isso se perpassou por dias até que, em um átimo, em um único fio puxado, todos acabaram envolvidos e fora de seus paradigmas naturais de passantes indiferentes. A rotina se quebrou.
Enfim, esse conto é o décimo nono da obra “Estórias abensonhadas”, de Mia Couto. Inquietante é a palavra que define bem essa “guerra dos palhaços”.

Fica a dica.

SOBRE UM CONTO, O TERCEIRO DAS PRIMEIRAS ESTÓRIAS DE ROSA

Não devemos ler Guimarães Rosa. Pelo menos não em voz alta. Devemos nos manter “lúcidos”, pois saibam: Rosa nos consome em encantamentos quando o ouvimos em nós, com nossas vozes. Emprestar vozes a Rosa é como embriagar-se em bebidas de adegas particulares e perdidas em alguns de nossos sótãos interiores: locais de vinhos raros, finos e que, muitas vezes, nem mesmo nós sabíamos que tínhamos alí, tão perto...
Eis uma das estórias desse Baco que está sempre pronto a nos embebedar. Querendo se achar, perca-se com ele. Beba...
“Sorôco, sua mãe, sua filha”. O conto – o terceiro das Primeiras estórias (1988) –, de Guimarães Rosa, nos conta a história de Sorôco. Homem quieto, sério e triste, pois a narrativa nos leva junto com ele (que era também viúvo) a ter que acompanhar sua única filha e a mãe idosa até a porta de seus destinos: a um carro de ferro que às levaria ao hospício. Ao entrar no trem, olhando para baixo, a criança canta. Em seguida a mãe/avó embarca. Antes sempre calada, agora segue na mesma canção da neta. O homem, cabisbaixo, contempla as duas partindo, talvez, para nunca mais. O trem parte. E ele, Sorôco, fica na mesma toada, na mesma canção daquelas duas, suas duas mulheres 'enloucadas'. Os passantes da estação, percebendo tudo e em comunhão com aquele pai/filho tristonho, se olham e vão cantando em um único coro atrás de Sorôco. E todos produzem a mesma canção solidária. 
Mesmo tendo uma descrição propositalmente detalhada de algumas ações e apresentações na obra, o movimento se faz em toda ela, inclusive no final, pois acabamos não conseguindo encerrar o conto, ficamos absorvidos olhando por cima do livro e seguindo tristes no mesmo coro atrás de Sorôco.

Advertência: não reproduza o ritmo desse conto, pois é possível que fique preso nele por horas perdidas a olhar para o horizonte. Aconteceu comigo. 

NOTAS DO SUBSOLO, UMA LEITURA

Através de algumas vozes que lembram monólogos – diríamos – intimistas, Dostoiévski, em suas “Notas do Subsolo”, nos proporciona questionamentos que vão muito além do que queremos ouvir. Ele nos faz existir sob suas ideias por saber bem arranjar-se sob as nossas e sob todos os tempos. Indigesto, no sentido sofrível da percepção de nossas próprias falhas, Fiódor Dostoiévski (1821- 1881) vai sendo provocativo em cada página virada.
Assim, saindo do campo demagógico de dizer só o que agrada, o autor liberta-se em sua ficção para dizer o que a neblina da sociedade tenta até hoje esconder pela multidão: o indivíduo, o sujeito falho e mesclado de posturas intermitentes de moral e amoralidades. Mesmo assim, como um leitor poderoso da alma humana, ele consegue ir além. Consegue chegar até nossos dias, nossas nações, vai até nossas casas e se farta pelo empréstimo de nossas vozes, já que hoje sua pátria seria a Rússia, mesmo que os espaços transgridam – como dissemos – aos tempos e às geografias. Sim, atestamos: ele ainda permanece aqui, basta abrirmos o livro. Nessa obra (‘Notas do Subsolo’), O autor ultrapassa tudo isso, claro, pois vê o humano nas linhas de suas atitudes e, como, obviamente, fazia parte dessa humanidade, desalinhou-se nas linhas de sua escrita para deflagrar-se e fazer com que percebamos algumas das nossas hipocrisias sociais. É certo, Dostoiévski está aqui, porque todos somos objetos de seus olhares apurados, mesmo antes de termos nascido. Uma previsão do que nos tornamos/tornaremos. Sim, somos homens e homens podem ser lidos.
Quero lembrar também que, entre muitas obras, esta da qual falamos, foi confiada a mim por um amigo. Ele insistia em dizer tratar-se de um presente, mas considero o ato de dar um Dostoiévsky mais do que isso, considero uma ponte que pode ligar outros mundos, inclusive, fabricar novos.
Ainda não esqueço à advertência que fez o colega e amigo Prof. Rodrigo Bartz ao legar-me à obra. Reproduzo:

“Se estiver deprimido, ele pode te deprimir ainda mais ao fazer de ti o próprio inferno existencial. Sem solo, ficas tu sofrendo no subsolo das reflexões dostoiévskianas.”