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terça-feira, 29 de setembro de 2015

CARPE DIEM

Tuas lonjuras estão infestadas de logo alis.

Há dias em que o Sol parece não brilhar como deveria. O problema é a falta de luz, não a do astro. Refiro-me aquele escuro de dentro da gente, lugarzinho ruim de clarear. E quem nunca se pegou assim? Perdeu-se assim? Apagou-se assim? Frestas? Sim, às vezes é preciso redescobrir fissuras para que o mundo possa nos iluminar com algum fiapo. Mesmo não encontrando brechas, tente abrir outras frinchas, arejar-se, rasgar-se até os ossos, se for necessário. Fácil? Nada fácil! Justo por ser este um exercício repetitivo, diário e complicado, já que jamais voltaremos a ser os mesmo que fomos ontem. Não sendo iguais, fica difícil esperar que os demais, igualmente, sejam recebidos pelas novas versões do que foram no dia anterior, uma vez que até o Sol renasce como outro a cada amanhecer. Há muitos “Sóis”!
Contudo, sei bem, iluminar-se é uma missão quase cinematográfica. Talvez porque – sem nos darmos conta – abafemos os poros no final de cada um daqueles dias tenebrosos (e quem nunca teve um?). Entender? Não se trata de apenas entender. Acho que guardar os problemas em algum cantinho seja a melhor saída, uma boa medida para se livrar, por hora, de algo que nos aflige, mais tarde o pegamos – claro! Depois sim é que vem a compreensão (eu disse com-pre-en-são: ‘entender com’, ‘junto de’...), que é quase o equivalente a um ler-se, reler-se, tresler-se, livrar-se da escuridão que nos prende àqueles pensamentos que não pertence ao “ali”, mas ao “lá”. Autoajuda? Nada, é autoconstrução. Afinal, acabamos sendo um bocado de pessoas por debaixo de nossas peles – todos querendo respirar, sair da cegueira de ter visto demais o “de menos”.
Pois é, o mundo deve ser feito de sombras que se revezam na luz e, tal como o coração, o Sol, indiferente desse lado escuro, não sabe desligar, as coisas é que giram. O jeito é rogar para que os escuros possam ser bem mais do que um silêncio, que sejam silêncios a espera de vozes e ‘palpitações’ afinadas para o giro de outras canções.
Quanto aos momentos mais sombrios, costumo – confesso – pôr uma música (em geral uma sinfonia) e fechar os olhos enquanto ouço. Entendendo pouco do gênero, sinto jorrar as cores que se distribuem dentro de um lago bem iluminado. Igualzinho a um tambor que pulula ao ser arremetido por uma baqueta qualquer. Relaxo.  Ah! A saída tem sido essas imagens que se embebedam de algumas notas. Das feridas, fazem-se aberturas. Das aberturas, entradas francas que não sangram mais, que se regozijam com um suspiro leve ao recordar da existência de meu próprio instante de carpe diem

sábado, 26 de setembro de 2015

SEJA BEM-VINDO DE VOLTA À IDADE DAS TREVAS

Amar é um verbo que se eterniza em milhares de conjugações.  

Há muito, Olavo Bilac, excelente poeta (disso não discordamos), atacou publicamente o escritor Raul Pompeia. Bilac, deixando-se vazar por sua parte menos poética (a da política), ironizou o fato de que Pompeia não havia formado família e que se masturbava à noite em seu quarto solitário. Sim, para quem se lembra do Sérgio, personagem principal do “Ateneu”, vai recordar também de que em certo momento ele foi abusado por meninos maiores dentro da instituição (do Ateneu). Pronto. Creio que esta tenha sido a gota que ajudou a transbordar o copo. O que aconteceu depois? O que dizem as fofocas literárias é que ambos (Olavo e Raul) desafiavam-se frequentemente para duelos, porém, felizmente, a polícia sempre chegava antes para intervir. Triste, mas três anos mais tarde, em dezembro de 1895, ele, o romancista, não aguentou mais e cometeu suicídio. Homossexual? Isso ninguém sabe. Sabe-se apenas que naquele tempo duas coisas eram ofensivas, inaceitáveis para um integrante da política: ser homossexual e ser negro (lembrando que a Lei Áurea, que foi assinada pela Princesa Isabel, é de 1888).
Bom, hoje, no séc. 21, isso tudo deveria estar fora de moda, desatualizado até. Só que não. Sutil e descaradamente, ainda sentimos esse tipo de fedor. Inclusive, há poucos dias, soube que certa bancada de deputados sugeriu um projeto que pretende definir um padrão específico para a família brasileira (homem e mulher). E que tal copiarmos os excelentíssimos e, de igual forma, também definirmos fronteiras – já que estamos dentro de um país laico – pelas quais política partidária e religião não se mestiçassem tanto? Penso que não iriam gostar, lógico! Entretanto, (admito) as duas são importantes, mas não, não dá uma boa mistura, suco amargo demais. Porém, claro!, se vivêssemos ainda em meio à escuridão ‘medieva’, seria natural sermos cobertos pelas trevas que enublam o que não merece descoberta: o amor livre, por exemplo.
Bom, pensando bem, não sei se devia ter articulado esta croniquinha. O que sei é que, para alguns, não é permitido evoluir afetivamente, libertar-se para o amor, já que famílias precisam ainda estar disponíveis aos moldes da Idade Média, pois as rédeas do falso moralismo não nos deixam em paz. Ou seja, mesmo infeliz, não se apaixone, não ame, desrespeite sua natureza, desrespeite-se para usufruir o que os deuses de alguém reservaram para você (e olhem que hoje eles estão até legislando no planalto): que é uma vida sem completude e sem cor familiar. 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O ‘FAZER-POEMA’ NÃO É FÁCIL...

Nunca me arrisquei muito na escrita de poemas (e não pensem que não tentei). O que liberto de minha pouca ‘poética’ anda distribuído/diluído entre as crônicas catadas de alguns borrões derramados pela memória (o que considero menos perigoso). Sei bem que o ‘fazer-poemas’ exige muito mais do que vazamentos, porém, popularmente, parece ter se consolidado como a tarefa mais simples do mundo, simplória até. E não é. Saibam amigos, quanto menor a estrutura de um texto, maior a dificuldade em tecê-lo, pelo menos dignamente. Rimas pobres dos tipos amar e sonhar, saudade e verdade, em geral levam as imagens para lugares comuns. São como sopros indesejáveis e que fazem qualquer veleiro perder o norte – a não ser que sejam movidos por suspiros semelhantes aos de um Quintana: este sim soube enriquecer o que parecia pobre. Leiam-no.  
Quanto aos espaços, sim, eles também precisam fazer parte da construção (digo parte mesmo). Não estão ali apenas porque o “poeta” os achou bonitinhos. Qualquer excesso (no poema) é pecaminoso, nada pode se perder nele. Em outras palavras: se fosse uma laranja, até o bagaço seria importante.
Não quero assustar o leitor, muito menos inibi-lo, mas a construção a que me refiro precisa encontrar uma razão (mesmo pouco razoada) para existir. Neste texto mesmo, se eu tirar uma palavra ou outra, uma frase ou outra, que seja, ele continuará a ser, o foco permanecerá firme, posso trocar, substituir. Diferente dos versos que precisam versar afinadinhos, musicando traço a traço os desenhos e as lacunas que precisam estar abertas para o leitor. Assim é a arte, e ela só sabe existir na diferença do ser que nos tornamos em cada leitura. Ou seja, se há riscos em uma boa pintura, eles estão ali por alguma razão. Como eu disse, na arte não há excessos; na vida, quem sabe?
Penso, com isso, que a vontade de ser mundo – como a dos poetas – é maior do que a de ter mundos. O ideal mesmo seria uma simbiose simples e feliz, como a de um gato que deseja ser silêncio, que se funde no silêncio. E só porque tenho vontade de ser poeta, não quer dizer que seja um. Palavrinha difícil de vestir.  
  Entretanto, aos que se aborreceram durante estas linhas, quero que saibam: a escrita é uma necessidade de continuar existindo pela voz de alguém. Escreva mesmo. Para isso, não é preciso sentir-se escritor ou poeta. As palavras precisam tocar o outro, porque é nele que nos inscrevemos, seja falando, deixando-se vazar pelos poros ou pela textura inconsciente de uma folha branca de papel – com a simplicidade que nos exige a pele de alguma folha branca de papel. Só cuide! Ser poeta não é titulação. É nudez. 

sábado, 19 de setembro de 2015

A MENINA E SUA BICICLETA

Estamos cheios de lonjuras, as mais distantes estão dentro da gente.

Não lembro o ano. Estávamos ali, em uma das disciplinas do Curso de Letras – Literatura Africana de Expressão Portuguesa, para ser mais exato. Imersos pelo encanto que aquelas verdades nos provocavam, ao meu lado vi uma figura. Tratava-se de uma menina magrinha e que, aos poucos, afinava-se conosco. Já havia a conhecido entre os bancos ‘azuis-infinitos’ das aulas de Antropologia Cultural, mas naquele momento, igualmente fascinados, dividíamos um azul diferente, agora colorido pelas costuras que nos ensinavam os mestres-agulhas de outros tecidos: os da Literatura.
Falei em tecidos, no entanto, para fora dos panos acadêmicos, ouvi dela uma história que enredou outros alinhamentos. Então, durante alguns intervalos, compartilhou comigo parte daquelas vontades reais, dessas que se engordam em pontos pouco mais difíceis do que qualquer teoria de alfaiate. O que me fez pensar: “Nossa! Seus traços entrelaçam-se pelas franjas da vida. Ela é uma bordadeira.”.
Pois então, saibam que para ocupar um daqueles bancos azuis, a moça teve que viajar bastante. Soube que em determinados momentos (geralmente à noite), ela pegava sua bicicleta e pedalava do interior de Vera Cruz até a cidade vizinha, onde, cansada, podia desfrutar das vozes que emanavam do Curso de História, sua paixão. E não, ela não era esportista – se querem saber – fazia isso porque tinha que fazer, por necessidade mesmo. Na época não havia outra maneira para chegar. Então, cheia de coragem, fez de sua ‘monark’ um passaporte.
Assim ela andou por muito tempo. Para os menos sábios, aquele veículo não passava de um amontoado de ferro retorcido sobre duas rodas (e como os olhos nos traem!). Naquela bicicleta ganhava estrada uma historiadora, Mestre e, hoje, doutoranda em Arqueologia – ciclista de pistas sinuosas e de distâncias muito mais longas do que qualquer outra lonjura. Refiro-me às lonjuras de dentro da gente.
Enfim, hoje a menina não precisa mais pedalar – pelo menos não naquela monark. Neste momento pega carona nas palavras e se "enlenha" preparando-se para, como uma faísca crescida por um sopro, virar uma fogueira enorme.  A garotinha magrinha e que só desejava assistir às aulas na Universidade, agora virou Patronesse, não apenas da Feira do Livro (de Vera Cruz), mas da vida. É só tirar um tempinho para ouvi-la. Peçam esta história. Ouçam a menina Marina Barth... Peguem carona em sua bicicleta.  

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O JULGAMENTO DE CAPITU

Não julgueis, para que não sejais julgados.
                                                             (Matheus 7:1).

Gênio. Joaquim Maria Machado de Assis é genial. Digo no presente porque sim, a cada leitura, ele continua a existir – e ainda insiste, com suas bruxarias, em conservar-se no tempo como um Shakespeare só nosso. O mestre, para não deixar dúvidas de sua eternidade, perpetuou uma inquietação que atravessou o século e até ele mesmo (refiro-me a sua parte mortal, a do corpo): “Afinal de contas, Capitu é culpada ou inocente?” Pois então. Alguém sabe? Vou contar sobre o caminho que me percorreu (sim, não errei, o tal questionamento me percorreu mesmo!).  
Acompanhem:
Há alguns anos, – encantado pela literatura machadiana – resolvi reler todos os contos e também os romances dele (só os Realistas, não me perguntem o porquê). Neles, óbvio, algo me chamou atenção: os nomes. E existe até uma nomenclatura para esse tipo de estudo, chama-se onomástica. Difícil, não é? Eu que o diga. Enfim, com isso, percebi que havia um mundo inteiro morando ali, naqueles batismos, e que, a cada personagem que se desenhava, o nome afinava sua personalidade. Querem saber de alguns? Aí vai: “Fulano Bertão” (fulano, BELTRANO, sicrano); também, se observarem com calma, todos os que lembram leão: Leonor, Leonardo... cada qual carregando certo oportunismo felino; “Lucrécia”, do latim lucretia, que significa “aquela que precisa gerar lucro” (sobre uma menina negra que trabalhava para uma senhora, do conto “O caso da vara”); entre outros. Bom, não me delongo, há universos e universos a serem espiados em cada entranha daqueles escritos.   
Está bem, continuando, vou ficar com o que me causou mais espanto, pois, havendo anotado e analisado cada personagem (intuitivamente, claro!), cheguei até o mais evidente, o Dom casmurro. “Bento Santiago, te peguei!” – pensei enquanto abria um sorriso para ninguém ver. “Santo e Iago, hum!”  
Bom, explico: sabendo que Machado era um shakespeariano de carteirinha, vou expor só um personagem dele (do Willian): o Iago, de “Otelo”. Ele (o Iago) é o veneno da obra, fez Otelo matar Desdêmona, sua esposa. Acho que não preciso falar mais. Sabendo que Santo é o oposto de Iago, o que podemos esperar de uma narrativa que é toda descrita por um ser que tem na essência essa mistura? Bento Santiago, homem intrigante! Um Casmurro bipolar que, decepcionado com o mundo, nos faz crer que o amor de sua vida o traiu. Não é à toa que Capitolina lembra capeta, e Desdêmona, demônio. Diadorim, esta foi a diaba cunhada por Guimarães Rosa (esta fica para outro texto). Mas voltando ao assunto. Ah, essas mulheres e seus feitiços infernais! Precisamos cuidar. Todas – cada uma delas – possuem olhos oblíquos e dissimulados. Vide os espíritos tortos e embaraçados de nosso ‘sofrido’ casmurrão.
Julgamento? Mas não precisamos das duas partes para efetuar o embate? Saibam que qualquer bandido tem esse direito. Conseguem citar uma só fala (que não seja das memórias duvidosas de Bentinho) na qual ela revele o que pensa sobre isso? O seu ponto de vista? Ela é a vítima, meus amigos! Claro que não encontrarão o lado avesso, já que a obra toda acontece dentro das recordações de um desconfiado da vida. O lado dela quem conta, ora é o Santo, ora é o Iago. Ambos desafinados pelo tom vitimado daquele Casmurro tão triste.  
Perante a estes fatos, qual seria o seu veredito?  

terça-feira, 15 de setembro de 2015

CINEMA PARADISO: SOBRE O AMOR

O amor vira madrasta ao nos perceber para fora de seu reflexo. Espelhos são frágeis, não negam beleza a quem os pode quebrar - só que não somos espelhos.

Hoje, enquanto retornava para casa, fui observando cegamente o mundo – meus olhos se voltaram para dentro, para as memórias. Tomado pela trilha sonora do filme Cinema Paradiso, composta pelo maestro Ennio Morricone, acabei saindo dali. O carro até parecia me dirigir, ao invés do contrário. Bom, acho que entrei no modo piloto automático (e quem não desliga de vez em quando?). Na estrada, perigoso, preciso dizer. Contudo, naquele momento, o aleatório do som parou para brincar comigo, fez-me andar, andado pelo veículo que me conduzia. O automóvel levava meu corpo, meu corpo levava aquela história que, por sua vez, transportava-a para um ponto inventado de certas recordações que carrego. Nem sei como cheguei em casa, inclusive. Coisa de bêbado – eu sei que pensou nisso.
A música me levou para outro tempo, para um filminho só meu. Pensei, fiz analogias entre a obra e o que se passa/passou na vida. No filme (o do Cinema), Salvatore se apaixona explosivamente por uma moça, ambos jovens. O tempo correu. Consegue parar um rio? Pois então, não é diferente disso. Ele nunca mais a viu. Pobre garoto, sem dúvidas passou a vida apaixonado (o que este “não-ver-mais” ajudou, e muito, a engordar). Amou uma imagem, ou a senhorita? Sim, ele foi tocado, e todos são tocados pelos próprios tambores, deve ser isso. Mas e o coração dela, tamborilou?
Sempre o mesmo: procuramos o amor, mas encontrar-se nele é que é um achado. Só amamos quando aprendemos, desaprendemos e reaprendemos a afinar todas as cordas de nossas razões, ultrapassando aquelas imagens que amamos à distância. Contrário a isso, o que se pensava amor acaba, pois nos damos conta de que, não sendo uma cópia fiel de nós, o outro é capaz de existir sozinho, ela/ele não é pueril, ninguém é. Quebrando o egoísmo, quebra-se o encanto. Mesmo sabendo que ele (o amor) é uma doença estranha e que não sabemos direito de onde vem. Se do corpo, se da alma, se da imaginação... O problema é que sabemos muito bem sobre a cura – e o pensamento sobre a cura, quanto mais profundo, é que nos ‘enfebra’ ainda mais.
Voltando ao que estava dizendo, os filmes (no que incluo os meus), através da música, me fizeram visitar um lugar onde só existe dentro de mim mesmo. Se isso tudo aconteceu também para fora? Sim, algumas coisas sim, o restou tornou-se a mais pura verdade, porque fui eu mesmo que inventei.  E quem nunca viveu um grande amor? 

sábado, 12 de setembro de 2015

O SENTIDO DA VIDA

A arte existe porque a vida não basta.
(Ferreira Gullar, em entrevista).

Tenho por costume escrever. Quem me conhece já sabe disso. Firmei com essas ‘escrevinhações’, inclusive, um pacto com uma amiga. O acordo segue-se assim: para cada texto que envio a ela, em troca, ganho uma música. Sim, além de ser uma leitora que carrega olhos cheios de “escutas”, a moça também ouve colorido: ela toca, e se liberta naquele “deixa-ficar”, lonjuras alcançadas através de algumas composições de Bach, de Mozart, de Debussy, de Chopin, de Puccini, de Monteverdi, de Verdi, de Carissimi, de Lully, de Beethoven, de Wagner, de Saint-Saëns... Pois é. Enquanto eu silencio a vida pelos dedos, chocalhando as letras do teclado, a guria engorda o mundo através de outras teclas, as do piano. Às vezes tenho a impressão de que ambos sentimos o mundo em braile, cada qual em suas dedilhadas e afinações. Fora disso, creio, ficamos para dentro, inexistentes para os outros – e os outros é que nos dão existência (daqui a pouco explico).
Quanto ao escrever, difícil conceber algo que não seja realmente afinado por aquilo que sentimos. Os silêncios (no plural mesmo) acabaram se tornando a minha casa, o meu país. Leio um livro e preciso escrever. Um poema, escrever. Vivo uma situação que me agrada, escrever. Que me desagrada, escrever. Um sonho, (adivinha?), sim, escrever. Bem ou mal. Agradáveis ou pouco mais densos. Leves ou duros. Cada voz vai servindo de costura, como estampa da vida, estampa que preenche os desenhos que preciso e sinto que devo fabricar.  Tudo isso me “enbruxa”, tal como um boneco feito de restos de retalho, bruxinho de boca costurada.
Da mesma forma deve ser complicado para os que precisam esticar a vida através da música. Mesmo que da última vez, nessa troca, tenha recebido, ao invés de sinfonias e cantatas, um vídeo nutrido pelas vozes do poeta Ferreira Gullar.
“Qual o sentido da vida?” – perguntou-se ao poeta. “Vivo porque tenho consciência de minha existência.” “Mas será lembrado, sabe disso.” “Na memória dos outros, pela minha não. Ela já não existirá para mim. O outro é que me faz/fará existir, existimos para eles. Então, ao menos para mim mesmo, o sentido da vida é o outro.”.  
O universo? Bom, depois dessas falas, penso que ele mora naquela fresta que se abre e fecha dentro dos olhos do gato: aquela pequena fissura que engorda e emagrece ao ser 'concertada' pela batuta da luz. É música. É infinitar – pôr o infinito no infinitivo. Um átimo, o universo é só um átimo que há tempos deixamos de contemplar. É o outro.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

PROFESSOR POR VOCAÇÃO...


Um jarro deve ter caído sobre minha cabeça. Antes, naqueles outros que era, nem sonhava em seguir os passos de meu avô, o prof. Fernando. Mas um livro. Bastou apenas um livro para me avivar a alma. A partir dele, engordado pela sugestão de uma professora, segui como se aquele fosse o limite entre os meus antes e os que precisava ser. A docência – admito – não era o motor que movia meus objetivos (distante demais). Eu tinha uma máquina por dentro, todos temos, só que ela não roncava para os lados da vida de quadro e giz. Queria viver de palavras, nas palavras, pelas palavras. Lógico que, ao menos que tenha sorte e uma dose de “bem-te-vi”, ninguém pode viver assim. Então, lúcido das lonjuras, enchi a “guaiaca” de fé e estabeleci um objetivo. Chamei uma moça que varria ao meu lado (estávamos em pleno trabalho dentro de uma dessas fábricas) e proclamei: “vou fazer Letras!”.
O caminho foi difícil, já que na época não havia nenhum Prouni, Enem, ou benefícios do gênero. Tudo o que sabia era que amava as palavras e dedicava todo o tempo que podia a elas. A vontade esquentou meus motores. Lembro até que a moça da vassoura ainda reagiu: “Isso é coisa de rico, guri! Vai trabalhar.” O que só pude ouvir agora, enquanto “cronico” estas andanças. Putz! A cegueira havia me pegado de jeito – pelo menos aquela que não me permitia enxergar as pedras ‘estorvadoras’ de estrada. Quando, de repente, uma notícia apoiou minhas “futurações”. Carecia de um emprego fixo, ele apareceu (mundo brincalhão este!). Recebi um chamado de concurso que há muito havia prestado e que, então, me veio a calhar. Operário, era esta a função que deveria exercer. E fui.
Logo nos primeiros meses, estranhamente, reparei que algumas pessoas que conhecia não me cumprimentavam mais. “Cara, está usando o uniforme invisível. Ninguém olha para o que não vê!” Senti na pele o que aquelas palavras me destinavam, mas não afrouxei. Sempre com um livro no bolso (alguns conservo ainda hoje com as sujeiras de terra daquele tempo), segui sem esmorecer. Passei dez anos assim. Consegui me formar no Curso de Letras em exatos sete anos e meio, no que recordo: o curso normal fazia-se em quatro. Sofrimento? Bom, hoje, olhando para trás, não acho não. Fiz grandes amigos por lá, entre os operários. Tínhamos boa filosofia à beira de um velho fogão que, junto conosco, algum político (CC) havia empilhado nos espaços daquelas almas que não mereciam respeito. Dias frios, quentes, infinitos meios-dias... Ali fui inspirado e também inspirei (alguns deles, hoje, são professores, inclusive). Verdade. Tive uma vida boa por lá, apesar de trabalhosa.   
O fato é que o chamado veio. Já no primeiro estágio (muitos anos antes). Nele (neste “venha”) percebi que podia sim ganhar a vida falando sobre o que me encantava desde ‘lá-detrás’. Ouvi o coração e, neste momento, enquanto escrevo, intuitivamente, planejo aulas e tudo o mais que ele continua a ditar. Mais tarde, completei também o Mestrado, para o orgulho dos “velhos”, que passaram a brilhar os olhos ao me ouvir falar. Por isso, sem papas na língua, não admito que me julguem como não merecedor de meus diplomas. Não tive ajuda (a não ser de minha esposa), assim como muitas das pessoas que convivi. Sou professor por vocação. Entretanto, sendo muito mais lúcido nos tempos de hoje, rogo para que possamos seguir bem. Não apenas lutando por salários justos, mas amando e respeitando as histórias de homens que somente tinham a vontade como riqueza. Respeitemos os chamados, respeitemos a cada decisão. Tolerância é um bom exercício.
Contudo, ser professor, sim, para mim é a única orientação. Obrigado vô Fernando. Segui. Comi terra. Calejei as mãos. Tudo para hoje sermos dois, dois malucos sem santidade naquela família que assina dos Santos. Como podes ver (esteja onde estiver), ainda está difícil. Creio que teremos ainda muitas vontades para superar. Mesmo assim, se eu morresse agora, sei que me despediria feliz. Um bobo desgovernado que ama cruelmente a um quadro e a poeira de giz.
E consegui. Hoje, mesmo economicamente defasado, sobrevivo de palavras...  Viver? Ora! Nutro os “por-dentros”, só estou magro nos “por-foras”. O segundo morre fácil, mas o primeiro ainda persiste em fazer do quadro negro uma janela.
Acho que virei um Quixote... 

SOBRE CRIANÇAS QUE MORREM NA PRAIA...

Triste, mas alguns ainda reclamam que os ‘intrusos’ devem permanecer em suas casas, em seus países, sem rumo e sob a aba daquele limbo destinado aos que não podem entrar e nem sair – tal como fantasmas bem "judiados" e que assombram algum antigo campo de concentração.
Sim, a intolerância assusta, reprime e desrespeita o direito mais caro que conquistamos: o da igualdade. Os 'hojes' esquecem-se dos 'ontens' - prevalecimento fascista que desencanta quem vê, sofreu/sofre com isso e, portanto, não esquece. Agora estamos tranquilos; antes muito de nós também morreram. Então por que continuar matando? Não sabemos. Mesmo nos orgulhando em atirar palavras duras no peito de algum moribundo desesperançado. Tiros disparados por todos os lados, principalmente se estamos bem, seguros. Triste. Desumanidade e covardia são o que restam. Quando iremos aprender? Seria um ótimo exercício se tentássemos preservar ao menos as almas de quem precisa, também, existir. Ensaiemos isso. Ensaiemos a alteridade.
Dentro desses fatos, penso que ser entendido é só uma maneira de continuar sozinho. Compreendido, um modo a mais de se povoar. Por isso a solidão insiste em morar neles (nos refugiados) – casas tristonhas, pois poucos fazem conta em arejá-las. Assim devem se sentir todos os homens, mulheres e crianças que, hoje, estão sujeitos a ‘estrangeirações’. Dignidade e acolhimento são o mínimo que podemos oferecer enquanto seres humanos.  E que fique bem claro, a compreensão é como uma mão. Ela deve ser posta sobre a outra, sobre a mão de outra pessoa, assim, para compartilhar o calor. Entender? Não, entender não é compreender. Falta o (co) do prefixo que nos faz refletir. Falta o “junto”.
Saibam, senhores, além de nosso passado fora destas terras, somos mestiços de infinitas raças. "Rastiços" dos que vamos tendo que ser. Cada um daqueles meninos que fomos – borrões no painel – representa uma cor que deixamos se misturar e transparecer: somos eles todos. Sendo assim, um garotinho pisoteado pela injustiça deve sim nos incomodar. Precisa nos incomodar!
Enfim, se você acha que os haitianos devem sair daqui, vá embora junto, pois, a menos que seja índio brasileiro, também não pode ficar. Todos já fomos estrangeiros, esqueceu? Por que achamos que eles são diferentes de nós? Crianças, sírias ou não, não devem mais morrer na praia. Elas precisam chegar. A intolerância já matou gente demais. Como já disse o poeta: “é necessário abrir os olhos para dentro, se revisitar.”. 

domingo, 6 de setembro de 2015

INSPIRAÇÕES NECESSÁRIAS

Quem reza, não é mais do que os que não, pois oração sem ação não passa de solitário murmúrio.

“Pode nos dar uma esmola, senhor?” ­– quando uma cusparada molhou o seu rosto. Limpou com uma mão e estendeu a outra. “Isto fica para mim, agora pode dar uns trocados para minhas crianças?” A vergonha (acredito) deve ter invadido os espíritos daquele homem, ou não. Desconheço o mapa dos ‘por-dentros’.  
Eis um episódio na vida de Irmã Dulce. E não, enganou-se, não tenho religião, minhas preces precedem de outras verdades, o que não me impede de incitar meus escuros a se acenderem com luzes assim, como as de Dulce. Costumo, inclusive, dizer (para não provocar reações negativas) que minha religião está no plural, elas pertencem a todas as cores. Contudo, reconhecendo, admito que existam pessoas iluminadas e que vivem para nos trazer esperanças. Citei Dulce (a doce), mas poderia puxar mais algumas ‘bonitezas’ da memória, já que fui educado em ambiente judaico-cristão – não que ser solidário seja uma marca cristã, nem sempre é, aqui falo pontualmente. Por outro lado, como expressou a Madre Teresa de Calcutá, “se é muçulmano, seja um bom muçulmano; se é hindu, seja um bom hindu; se é cristão, seja um bom cristão.” Estas cores... É sobre elas que me referi ao considerar-me de todas elas. Escolhi ficar de fora, justo que seja assim, já que sou educador. Ser um reacionário religioso é como ser um político que prega só partidarismo. Respeita só os de sua sigla (ou coligação) e nutre o hábito de desprezar os que não são. Para tanto, usam até a expressão: “Não sou nenhuma Madre Teresa.” Enfim, mesmo cético, fico apático esse tipo de analogia.  
Nelson Mandela, por exemplo, apesar de ter ficado vinte e sete anos em uma prisão. Assim que saiu, não quis que o ódio da segregação continuasse o aprisionando aqui do lado de fora. Pregou igualdade e acerto entre pessoas negras e brancas. Sim, ele era inteligente, e homens e mulheres inteligentes sabem: biologicamente, pertencemos a uma mesma raça, a humana; existencialmente, a muitas, cada um de nós é uma raça inteira de si mesmo. Sabendo disso fica fácil compreendermos que haja um dia dedicado ao altruísmo (o contrário do egoísmo). Na África do Sul chamam tal data de o dia do ‘Mandiba’. Apelido carinhoso que deram a Mandela e que, em leitura aproximada de uma das línguas desse pedaço africano, significa “o pai”.
Engraçado. Outro dia um amigo me indagou: “Esses haitianos ficam entupindo tudo, por que não ficam no país deles, pô?” “Mas você não é de origem germânica?” “É diferente.” “Amigo, eles vieram pelos mesmos motivos que seus antepassados. E não, isso não é diferente, é só indiferença de sua parte.” Quando, em menos de uma semana, explode a foto daquele menininho sírio encontrado morto numa praia. A intolerância não poupa ninguém, mesmo. Quanto tempo mais levará para chegar ao mundo outra Irmã Dulce, outra Madre Teresa, outro Mandiba, outro Gandhi, outro Luther King...
Enquanto não chega, é bom que já comecemos a ensaiar a dança das cores. A religião que não prega, mas compreende que qualquer arco-íris não se faz com apenas uma cor.  
Tenho medo do que não sabemos fazer sozinhos... 

sábado, 5 de setembro de 2015

A CASA DE PARIR SORRISOS

Os tantos que somos não são os poucos que parecemos.

A casa que a gente mora é a metade do que somos. Quando estamos tristes, as luzes, mesmo acesas, tornam tudo escuridão. Se contentes, ainda apagadas, tudo se clareia em sorrisos e brincadeiras. As janelas também gostam de brincar, brincam que são mundos “de-lá-de-fora”. Brincadeiras passarinheiras, quando o dia nasce. Grileiras, quando o dia desce. E Gateiras, quando o dia morre – sim, a noite é como um gato enroladinho na poltrona, meio lua nova, meio lua cheia, meio meia lua, meio lua mesmo. Exatamente por isso que, agora, depois de pensar muito, ando evitando poluir o mosteiro. Inclusive, limpo os pés antes de entrar, não quero nenhuma poeira provocando espirros aqui dentro. Minha casa não é apenas habitação, ela me mora, reside em mim, em nós. Então preciso protegê-la, não apenas para me manter saudável, mas pelas outras moradoras que dependem de minhas cortinas para clarear ou escurecer tudo de vez, já que, assim como o edifício, todos sentem quando alguma porta está fechada.
Quanto às portas, pelo menos a da frente, serve de metáfora para os sorrisos que oferecemos ao receber alguém. Digo no plural (oferecemos), porque minha esposa e filhas esboçam (Junto com a casa e eu) a mesma luz dessa abertura de receber gente. Sei que o leitor está pensando que logo direi que nossas janelas representam olhos bem grandes, só que não. Prefiro seguir outra imagem, aquela que Mia Couto ‘brincriou’: “toda a janela tem vontade de ser mundo.” Aqui não acontece diferente, falei nelas logo acima, são brincalhonas. Lembram quadros extraordinários onde se faceiram imagens bem vivas, nenhuma precisa de venezianas.  
Contudo, tenho o direito de afastar desta casa qualquer pensamento ruim e que tenha o poder de angustiar a mim e a alguns dos meus, dos que moram debaixo deste teto. Estou ficando demasiado velho para certas diplomacias. O pouco que resta da vida (não me furto) guardo para ser vivida. Não posso mais permitir que a cor permaneça fraca e que o pincel não pinte mais. Só desejo manter minha casa limpa para que – de maneira bem simples – possamos parir qualquer raça de sorrisos em paz. Então, se me trazes suas sujeiras, não entre, senhor ‘cortineiro’. Preferimos tudo arejado e limpinho.
Por fim, se quiser, é claro que te acolheremos. Porém, se vier de má-fé, fecharemos as portas. Aqui não é permitido “desamar”. Limpe os pés e, antes de entrar, ensaie-se humano. Então, e só então, te receberemos.
Desculpem-nos o transtorno. Saiba que nem ao menos esta casa nômade (que chamo de corpo) pode entrar se não esboçar alegria, se não ciscar no tapete e se purificar de toda e qualquer sujidade que caminharam junto com os pés. Tudo fica do lado de fora.
Acho que é isso. Sejam bem-vindos!   


UMA LÍNGUA VERDADEIRA

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros.
Vinha da boca do povo na língua errada do povo.
Língua certa do povo...
(Manuel Bandeira)

Iguais às roupas, a forma como falamos também é de vestir. Todas verdadeiras, claro. Para cada ocasião, um traje. Para cada traje, uma ocasião. Ao conversar com meus pais, por exemplo, nunca uso formas pouco mais sofisticadas de fala – pelo menos não as consagradas. Suas línguas sentem com outros paladares. Uns até dizem que eles (meus pais) são demasiado simples; outros, sutilmente, que vestem as roupas pobres que o mundo lhes deu. Sinceramente? Não acho. Sei bem que a língua, tal como diz o professor Sírio Possenti, é como um rio. Está viva e sempre renovando suas águas. Pensando desse modo, como posso chegar até eles recitando minha gramática de baldes, que, de tão limitada, cabe num manual? Sei que algum linguista pode até não concordar comigo. Estou ciente, inclusive, que tentará encontrar defeitos neste texto (e na certa encontrará). Contudo, com o pensamento despido de finezas, aprendo bem mais com as pessoas que o tempo, este iletrado, vestiu.
“Fio, me escuta, escute os mais véio. Não vai.” – diz a senhora. “Mas nem falar tu sabes, sua velha burra!” Então ele parte. Cai. Levanta. Volta. E... “Mãe, preciso de ajuda!” “O que hove, home de deus?!” “Dei cabeçada. A senhora tinha razão.” Quantas vezes esse diálogo não se fez mundo? Pois é. Sabedoria nem sempre se percebe pelas roupas, pela língua, pela arrogância do dizer mais “bonito”. Saber é sabor. E para sentir todos os gostos, é preciso viver mais, experimentar mais. Fale “certinho”, se desejar, mas só se o outro estiver vestido da mesma forma, claro (não dá para ir a um casamento usando bermuda). Só não confunda falar “bem”, com conhecimento, nem sempre é.  
Sim, todas as linguagens são verdadeiras, porém elas precisam comunicar alguma coisa, ser entendidas. A língua de terno fala sozinha quando todos na sala usam roupas mais leves. Isso já aconteceu no passado.
Vejamos... Por algum tempo, por tradição, os padres ficavam de costas para o povo, realizando todas as suas liturgias em latim. Entendimento? Quase nenhum. Os ritmos eram o que faziam as almas dançarem – e dançavam mesmo, já que o encanto estava em outro elemento, morava na musicalidade e nos símbolos sagrados. Mesmo assim, ainda não comunicavam claramente. O que reforçou ainda mais a ideia de que a palavra de deus não pode ser entendida por aquele que não mantivesse sua fé. Fazia-se necessário acreditar, não era preciso entender.
Enfim, não censuro. Como havia dito ali em cima, todas as linguagens são verdadeiras. No que incluo a do corpo quando reverbera alguma verdade que o faz existir. Leitura necessária, tal como a de uma velha senhora que, a seu modo, nos informa caminhos mais sabidos para andar. Afinemos os ouvidos. Ouçamos primeiro. O vestir-se vem depois, quando responder. Fazendo isso, sem dúvidas, estaremos bem vestidos para qualquer ocasião. Estaremos sempre na moda. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

HOJE ACORDEI PARA DENTRO DE UM SONHO...

Aqueles que viajam mudam de céu, não necessariamente de alma. (Lucrécio).

Sou ignorante para o que possa fabricar tantas imagens, mundos pelos quais dessabíamos que moravam dentro da gente. O fato é que hoje sonhei. Deveria ter estudado psicologia para entender melhor do assunto. Bom, o amor pelas palavras me chamou para as Letras, o que é estranho, já que elas me fazem sonhar ainda mais. Pois então. Hoje acordei para dentro de um sonho tão bonito que até deu vontade de ficar dormindo para sempre. Ah! Os ‘logo-alis’ parecem tão distantes quando sonhamos – e como é frustrante quando, num susto, tudo se desconstrói. Troca injusta: uma ‘boniteza’ de universo pela lucidez de um daqueles lados da cama.
Não, não posso falar sobre o que vi. Mas não se trata de nada erótico (descarte essa ideia, leitor!). As imagens que tive foram mais coloridas do que isso. Um misto do que alguns dos de mim viveram, a se confundir com este que agora mesmo dedilha esta croniquinha para ti. Texto necessário, preciso dizer, já que sem ele a emoção acabaria logo e me atiraria para a realidade do dia, uma vez que o dia não cabe num sonho, pequeno demais. Vou protelando...
Por conta desse ‘acordar-se’, gostaria de ser dotado do poder de ter os mundos que quisesse quando estou fora, mas não podemos prever o que vamos encontrar no momento em que as cortinas se fecham. Nossas interioridades têm vontades bem loucas e que se (des)encaixam como um poema Cubista. Então descobrimos que a noite não é fora, são nossos ‘dentros’ que andam a passear.
Ando chegando à conclusão de que o dormir é ‘morfinar-se’, mesmo. É deixar que Morfeu sinta por ti e cuide do teu fardo enquanto morres por umas horas. Calma, não estou me referindo a uma morte só de partida (por umas horas, eu disse). Queria que os olhos todos funcionassem, também, de fora pra dentro, então não precisaríamos mais fechá-los para estarmos longe, viveríamos este sonho às ‘verdas’ – como dizem os meninos quando desafiam certo amiguinho para um jogo sério de bolitas, um para valer. Pensando melhor, alguns bons livros carregam esse “deixar-se ir”. Contudo, desdigo, não são neles (nos livros) que estamos falando.
Por fim, volto no sonho que tive. Recordo com carinho, porque se não o fizesse, restaria dele apenas um monte de areia. Sim, só escrevi aqui para prolongar os instantes daquele mundinho, para amá-lo mais um pouco. Por quê? Ora, porque “desamar” é deixar de ter mar. É quando nos tiram o mar. É ganhar um deserto.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

UM MUNDO SEM PROFESSORES...

Quero só um caderno, uma caneta e um professor. Isso me basta para mudar o mundo.
(Malala)

‘Só Eu Posso’ era um lugar onde as coisas ‘desaconteciam’. Por lá, todos andavam nus – e este estar-pelado nada tinha a ver com roupas ou sapatos. Nesse aspecto, todos viviam até cobertos, já que suas vergonhas deviam estar devidamente tapadas. A nudez estava na falta de palavras. Na grande cidadezinha, a pequenez que a fazia, logicamente, “inha”, estava no vazio. Livros estavam proibidos. Música, só as permitidas, nada de hinos ou canções. Havia até um decreto no qual devia ser extinta toda e qualquer forma de literatura, entendeu-se o perigo que a arte carregava. Em “Só Eu Posso”, além das roupas, somente se permitiam o uso de chapéus. No entanto, servia apenas para esconder o buraco que cada cidadão exibia para si mesmo, pelo menos quando sozinhos. O prefeito, Dr. Loboto Mia, sabia que o ‘não-saber’ precisava prevalecer. A política do “ocar cabeças” fazia-se importante. Legalidade que anunciava o seguinte: “todos devem submeter a si próprio e aos filhos a uma cirurgia corretiva.”  
Há muito que ele (Loboto) andava exibindo sua histórica “salvei vocês”. A ordem teria acontecido já em seu primeiro decreto, na sempre lembrada implantação: “Professores devem ser extintos e suas memórias apagadas da existência. As inquietações, estas madrastas, serão duramente combatidas.” Então, o motivo do iminente implante se fez claro quando o último educador, segundos antes de ser morto, bradou: “Nós podemos mudar ‘Só Eu Posso’...” – quando booom!!! Desfaleceu.
Desde então, para o alívio do prefeito, a paz prevaleceu. Todos aprenderam a viver com pouco, trabalhar muito e desembolsar mais ainda. As rendas chegaram a um número tão incontável que foi necessário criar um depósito. Mas onde? Quando um ministro deu a solução: “Há muitas Escolas, vamos usá-las como paiol.” Acalentados pelo ‘desssaber’, o povo mostrava-se satisfeito com a decisão, uma vez que não escutavam nem suas desapropriadas barrigas ‘desengordando’ de fome, acostumaram-se.
Contudo, naturalmente, a desafinação aconteceu. Aquele ensaio sobre a surdez mostrou-se finalmente completo, virou algo ensurdecedor. O roncar vibrou tão barulhento que foi ouvido de dentro do palácio do prefeito que, sem tirar o pijama, foi até ao centro da praça e decretou outra de suas medidas:
“Cidadãos ‘sóeupossenses’, devido a tanta ‘barulhação’, está decidido. A partir de hoje todos os estômagos devem ser retirados por motivo de ordem pública. Boa noite!”