A arte existe porque a vida não basta.
(Ferreira
Gullar, em entrevista).
Tenho por costume
escrever. Quem me conhece já sabe disso. Firmei com essas ‘escrevinhações’,
inclusive, um pacto com uma amiga. O acordo segue-se assim: para cada texto que
envio a ela, em troca, ganho uma música. Sim, além de ser uma leitora que
carrega olhos cheios de “escutas”, a moça também ouve colorido: ela toca, e se
liberta naquele “deixa-ficar”, lonjuras alcançadas através de algumas
composições de Bach, de Mozart, de Debussy, de Chopin, de Puccini, de Monteverdi,
de Verdi, de Carissimi, de Lully, de Beethoven, de Wagner, de Saint-Saëns... Pois
é. Enquanto eu silencio a vida pelos dedos, chocalhando as letras do teclado, a
guria engorda o mundo através de outras teclas, as do piano. Às vezes tenho a
impressão de que ambos sentimos o mundo em braile, cada qual em suas dedilhadas
e afinações. Fora disso, creio, ficamos para dentro, inexistentes para os
outros – e os outros é que nos dão existência (daqui a pouco explico).
Quanto ao escrever,
difícil conceber algo que não seja realmente afinado por aquilo que sentimos.
Os silêncios (no plural mesmo) acabaram se tornando a minha casa, o meu país. Leio
um livro e preciso escrever. Um poema, escrever. Vivo uma situação que me agrada,
escrever. Que me desagrada, escrever. Um sonho, (adivinha?), sim, escrever. Bem
ou mal. Agradáveis ou pouco mais densos. Leves ou duros. Cada voz vai servindo
de costura, como estampa da vida, estampa que preenche os desenhos que preciso
e sinto que devo fabricar. Tudo isso me “enbruxa”,
tal como um boneco feito de restos de retalho, bruxinho de boca costurada.
Da mesma forma deve ser
complicado para os que precisam esticar a vida através da música. Mesmo que da
última vez, nessa troca, tenha recebido, ao invés de sinfonias e cantatas, um
vídeo nutrido pelas vozes do poeta Ferreira Gullar.
“Qual o sentido da
vida?” – perguntou-se ao poeta. “Vivo porque tenho consciência de minha
existência.” “Mas será lembrado, sabe disso.” “Na memória dos outros, pela
minha não. Ela já não existirá para mim. O outro é que me faz/fará existir,
existimos para eles. Então, ao menos para mim mesmo, o sentido da vida é o
outro.”.
O universo? Bom, depois
dessas falas, penso que ele mora naquela fresta que se abre e fecha dentro dos
olhos do gato: aquela pequena fissura que engorda e emagrece ao ser
'concertada' pela batuta da luz. É música. É infinitar – pôr o infinito no
infinitivo. Um átimo, o universo é só um átimo que há tempos deixamos de
contemplar. É o outro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Divida conosco suas impressões sobre o texto!