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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

QUE HORAS ELA VOLTA?

Escuro. O Avental saía cedo. Não tinha carro. Só pernas para ganhar estradas. Sempre limpinho e correto, nunca atrasou um só dia no trabalho. Nem mesmo o Sol encontrava forças para acompanhá-lo, o madrugador iluminava os caminhos com outro tipo de luz: o da necessidade. Chegava. Preparava o café. Vestia os filhos dos outros. Levava-os à escola... Vivia o invisível. Pano vazio. Descarregado de gente.  
Contudo, não era raro receber roupas usadas de seus patrões. Quanta caridade! Que prazer redentor encontravam nisso. Seus restos vestiam as crianças da tal criatura. Sorriam. Vão todos para o céu por excesso de generosidade.
Enquanto filho do Avental (ele carregava minha mãe), passei a infância vestindo descartes, e não estou falando do filósofo René Descartes, este vesti mais tarde. Brinquedos quebrados, camisetas surradas e sem cor... Gente muito boa. Muuuuuuuito. Bah! Mas nunca me enganei, essa ‘bondade’ sempre foi clara para mim. Definitivamente, ao contrário do que afirmavam, minha “velha” não pertencia a nenhuma daquelas famílias que trabalhou (dizer isso fazia parte das doações, já que, em alguns desses lugares, almoçava só depois de alimentar os cachorros).
Um dia, inclusive, braba comigo, minha irmã bradou: “se não parar de incomodar, a mãe vai ficar morando na casa do Seu X.” Nossa! Sofri por uma tarde inteira por conta disso. Sentei no chão poeirento. Olhei para a rua. Estava tanto calor naquele dia que o horizonte chegava a movimentar-se nas distâncias para alimentar consideravelmente meus vazios. Aperta-me o coração precisar recordar dessa pequena tristeza de verão – já havia esquecido. Sim, o que uma criança vê, esquecemos. Natural deixarmos guardados os olhos daqueles meninos que fomos. “A que horas ela volta? Mãeeeee...”.
Enfim, aprendi a ouvir as pequenas histórias, mas necessito de, ainda, mais barbas brancas para poder contar direitinho. Só sei escrever vivendo, sentindo. E é preciso ser velho para ter vivido algumas dessas grandes "pequena-ações".
Para encerrar, preciso dizer: este texto faz parte de algumas memórias engordadas por conta de um filme que assisti ontem à noite: “Que horas ela volta?”. Obra protagonizada por Regina Casé, arrasando na atuação. Película excelente. Bela crítica social. Definindo em uma só palavra: necessária. Como puderam ler, o longa-metragem arrancou-me dos dedos os silêncios antigos e a emoção de um reencontro catártico e surpreendente com o avental de minha mãe. Espero ter conseguido passar direitinho o que senti.
O que mais posso dizer? Assistam, ora! Percebam essa beleza.  

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