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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A IRONIA MACHADIANA NA ESCOLHA DOS NOMES**


Tendo em vista o enorme acervo de obras escritas pelo autor, Machado de Assis, optamos em analisar apenas o protagonista Damião do conto intitulado O Caso da Vara, pois avaliamos (e tentaremos provar) que a interpretação desse nome, dentro do conto – além de servir de exemplo para que se fomente uma atenção especial às personagens que povoam, também, outros textos do autor – não estão simplesmente para ornamentar, mas contribuir de maneira essencial e efetiva a sua plena compreensão.
Aqui não exporemos outros acontecimentos, por acreditarmos já terem sido bastante trabalhados por outros críticos que se ocuparam em expor a biografia do autor. Preferimos ocupar-nos, propositalmente, com a parte da vida de Machado que expressa uma pouco sobre sua infância, com o pensamento de que se possa entender um pouco mais sobre as perspectivas contidas na ação dramática de O Caso da Vara, uma vez que o autor nasceu em 1839 e o conto se passa em 1850, período em que o escritor teria onze anos de idade. Em uma passagem do conto percebemos a seguinte coincidência: “Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela (...). Contava onze anos”. A mesma idade e o mesmo período em que o pequeno Joaquim Maria Machado de Assis vivera seu décimo primeiro ano de vida. O que não é uma coincidência. Acreditamos que há um comprometimento com o ponto de vista infantil resgatado na perspectiva da infância do autor, não que ele tenha vivenciado fato semelhante, mas na essência de capturar uma personagem inteiramente verossímil.  
Em O Caso da Vara, a trama acontece da seguinte forma: Aturdido pela fuga, Damião, depois de muito pensar, resolve asilar-se na casa de Sinhá Rita, viúva e que mantêm um relacionamento instável com o padrinho do garoto, João Carneiro, relação esta incompreendido pelo seminarista. Movido pela honradez de ver o filho como padre, o pai de Damião obriga-o a estudar em um seminário. Não aceitando a situação, o rapaz, em um ato desesperado, resolve então fugir da instituição. Abrigado, agora, na casa de Sinhá Rita, convence-a a falar com seu padrinho – este que tinha o entregado pessoalmente nas mãos do reitor do seminário – para mediar sua decisão ao pai. Enquanto a história se desenrola, o rapaz, já mais calmo, resolve relaxar um pouco. Como as vizinhas de Sinhá Rita vinham todas as tarde com suas almofadas e seus biltres para bordar sob a atenção da dona da casa que ganhava a vida ensinando e presidindo os encontros, o moço, agora mais tranquilo, resolve interagir contando a elas uma de suas anedotas. Assim como as outras moças, entusiasmadas com a brincadeira, Lucrécia, uma menina negra que bordava em um dos cantos da sala, parou o trabalho e começou a se divertir com o que ouvia. Naturalmente, comovido com a alegria de uma criança de aparência tão sofrida, Damião faz um juramento para si mesmo: resolve apadrinhá-la. Mais tarde, irritada ao ver que o trabalho da menina Lucrécia (que na raiz do latim é algo que se aproxima dos termos rendimento, lucro) não havia “rendido” como deveria, Sinhá Rita pega-a por uma orelha e a arrasta pela sala, mas no momento em que Lucrécia consegue se soltar, sai correndo e implorando para que a senhora parasse de machucá-la. Quando finalmente conseguiu agarrá-la novamente, Sinhá olhou para o seminarista e pediu que lhe alcançasse a vara que estava sobre um móvel perto dele. Naquele momento, até “sentiu-se compungido; mas precisava sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou a vara e entregou-a a Sinhá Rita”.
Dentro das crenças e tradições católicas, resquícios de característica mítica tradicionais, os Santos são entidades reverenciadas e respeitadas como representações equivalentes a algum elemento ou emoções expressas no mundo. Entre Santo Antônio, o casamenteiro; Nossa Senhora dos Navegantes; São Cristóvão, dos motoristas; Negrinho do Pastoreio, o santo que encontra o que está perdido; Santa Rita, a das causas impossíveis (atentem para a missão inquirida a Sinhá Rita no conto: convencer, mesmo que indiretamente, através de João Carneiro, o pai de Damião a aceitar a decisão do filho de não seguir a vida eclesiástica, tarefa quase impossível) e uma infinidade de entidades que fazem parte de um vasto repertório popular religioso, estão os gêmeos São Cosme e Damião, protetores dos inocentes (crianças), Santos estes que, pensando agora em Damião, de O Caso da Vara, nos dão a dimensão exata da intenção que tentou provocar o autor ao optar por um desses nomes, mais especificamente para adequar-se a essência da ação dramática (justamente o momento em que Damião alcança a vara para que a criança seja espancada). A ironia teve seu ciclo: quem deveria proteger – de acordo a promessa e o que se esperava pela expressividade do nome que carregava –, acabou transformando-se, inesperadamente, no veículo da ferramenta da agressão. A sutileza se torna completa em sua sofisticação quando comparamos o nome do seminarista Damião à alcunha “protetora” que permeia o nome de São Damião, um dos Santos cuja essência se firma na crença de que é, junto com o irmão Cosme, um dos protetores de todas as crianças de Deus.  
Enfim, nessa pequena e pretensiosa análise, esperamos poder ter conseguido demonstrar aos leitores um pouco sobre a intenção do autor ao eleger o nome do protagonista do conto. Acreditamos também que sem os elementos apresentados aqui não poderia ser possível a leitura plena do que concerne à compreensão exata da ironia construída por Machado de Assis, em o Caso da Vara. Contudo encerramos nosso relato com a esperança de que os futuros leitores das obras machadianas abram mais os olhos para perceberem o que se esconde por detrás de um simples nome de personagem, nunca esquecendo que estamos interagindo com as obras de um autor que não comete excessos em suas escritas, um verdadeiro “Bruxo” da boa literatura brasileira.

** Essa teoria tem uma história: "como sempre costumo ler no ônibus, naquele dia estava com a obra Terra do Sem Fim, de Jorge Amado (isso já faz alguns anos), percebi que havia um personagem que tinha o nome de Negro Damião. Fiquei inculcado, pois ele era um jagunço que atocaiava e matava suas vítimas por dinheiro, porém tinha um problema: ele recusava-se a tirar a vida de crianças e mulheres grávidas. Daí – nesse ponto da leitura –, bem atrás de mim, ouvi duas senhora conversando sobre os Santos da tradição católica... quando percebi, entre eles, os nomes São Cosme e Damião... Virei no banco e perguntei a que atribuíam-se essas entidades. Uma das senhoras então respondeu que se tratavam de gêmeos que foram consagrados como Santos e cuja a alcunha era a proteção de inocentes/crianças... 
Após esse episódio, agora prestando mais atenção nos nomes,  apareceu outra obra (O Caso da Vara) onde o protagonista também se chamava Damião. Constatei aí, como uma explosão de prazer, que o círculo estava se completando na ironia do nome e do que queriam dizer exatamente os seus autores ao batizá-los".
** Texto já postado, mas colocado de volta para que alguns alunos aproveitem com mais profundidade os temperos machadianos. Pelo menos essa é a intenção aqui!!! 

4 comentários:

  1. Oi Dilso, tudo bem?
    Pois é amigo, eu já havia comentado este, então para não parecer mera repetição, deixo aqui meu abraço!
    Excelente texto, amigo!
    Abraços e ótima semana!

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  2. Oi!!

    Após a leitura do seu texto aproveitarei melhor os temperos machadianos.
    É interessante a relação dos nomes das personagens com o significado dos mesmos.

    Abraço!

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  3. Dilso, sua análise é interessante e oportuna.
    Foi justamente inspirado no mestre Machado de Assis que aprendi a dar nomes aos meus personagens, irônico conforme sua ações.
    Suas obras são ricas de informações para o leitor atento. Também uso esse recurso de pôr traços autobiográficos nos meus contos.
    Realmente Machado é irônico desde os nomes dos personagens à critica social implícita.
    Enquanto lia sua seu texto, lembrei-me do conto "O Enfermeiro", que tem como um dos personagens Felisberto, uma explícita ironia, pois era um coronel rabugento, ranzinza, irascível e atrabiliário, portanto, desprovido de felicidade.

    Gostei deveras sobremaneira do texto!
    Desculpe-me o atraso, estava esperando um oportunidade para saberá-lo melhor.

    Parabéns pelo olho clínico!

    Abraços do amigo de sempre e obrigado pela culta análise do meu conto, muitos leitores meus se impressionaram também!

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  4. Machado de Assis revela que ironia não é humor ou simplesmente "zombar" dos outros... existem situações da vida que apenas o ser irônico consegue explicar com a profundidade necessária... Machado é eterno por isso... excelente blog...parabéns!

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