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sábado, 29 de outubro de 2011

VINTE E QUATRO HORAS...**




Cansado, cheguei finalmente em casa. O dia fora duro, mas não mais do que a incompetência de desligar por completo e ficar em estado puramente mecânico, sem pensar... Ao abrir a porta, que gemia em uma canção já conhecida, minha esposa recebeu-me com um sorriso de olhos e lábios, enquanto minhas filhas – cada qual a seu modo – abraçavam-me bem forte... Após o ritual de sempre (banho, café, mais abraços...), perguntei a minha mais velha como havia sido o dia... – Legal! – respondeu no ato. Baixei a cabeça, andei em volta de minha estante de livros, olhei para alguns e escolhi um libreto de ópera. Passei em frente à tagarelice da TV; por entre a brincadeira que se desenvolvia em outro nível de tempo; e recolhi-me a um pequeno espaço onde um tocador de CDs ficara calado, acredito, por um bom tempo... Pus o primeiro disco (Pelléas e Mélisande, de Claude Debussy), abri o tal libreto e acompanhei a tragédia...
   O tempo foi passando, enquanto a história ia se confundindo com imagens que dançavam e sofriam sob as vozes de seus personagens... Como podem verdades tão perfeitas evoluírem para uma obra tão bem arquitetada e envolvente? Quase me vi com os amantes Pélleas e Mélisande acompanhando o mar que embalava um navio de velas altas, solitário e que sumia vagaroso na noite descortinada ao final do Primeiro Ato... Abri os olhos e percebi onde estava de fato meu corpo. Levantei da cadeira, cumpri mais rituais, conversei com minha esposa sobre nossas sortes, beijei a todos e recolhi-me... Naquela noite não sonhei, contudo acordei aos poucos com A Primavera, de Vivaldi (apesar do inverno...). Tratava-se do toque de meu celular/despertador. Levantei, fiz o que mandava a rotina e segui para o ponto de ônibus. Entrei, sentei-me no mesmo lugar de sempre, tirei meu Dostoievski da mochila e continuei de onde havia parado... “Não Ródia, como pode viver assim? Isso não é vida. Um rapaz que frequentou a academia... O que aconteceu? Anda pelas ruas como alma perturbada... O que há contigo, Raskólnikov? Vive a conversar com perdidos como Marmeládov em tavernas decadentes de São Petersburgo...”. Fui trazido de volta à realidade quando ouvi o som que denunciava que meu ponto havia chegado. Fechei oCrime e Castigo e segui minhas pernas até o local de trabalho.
Durante a atividade, o corpo ia para um lado e o pensamento teimava em seguir para outro, e, entre uma parada e um tempinho para o tradicional café, tirava do bolso um pequeno volume... “Morte, morte... O que fazer se fora ela que se apaixonara por mim? Essa louca, agora matou seu marido e, sobre ele, deixou o cadáver de sua filha... Para ficar comigo? Essa Medeia, o que ela pensa? Essa bruta só conseguiu atear fogo em um espírito...”. Uma voz externa então me chamou... Hora de voltar! Fechei minha Noite na Taverna e deixei adormecer o Gênio (Álvares de Azevedo) na lâmpada de onde o havia libertado...
O dia acabara, peguei o coletivo, sentei no mesmo banco... “Ródia, nem a carta de sua mãe é o bastante para te trazer de volta ao mundo? Eu sei, estou vendo sua preocupação! Sei também que parece simples resolver problemas alheios, mas levante a cabeça... Caminhe, sim, ande e pense, não olhe para mais ninguém, siga...”. Desci e segui... Porém não conseguia mais observar os rostos da volta, fiquei algemado a Raskólnikov e já não conseguia deixá-lo... Até que o som da porta se abrindo me trouxe mais uma vez para o corpo... Estava novamente em casa. Cumpri a rotina, voltei-me à estante e, agora – isso mesmo leitor, nesta mesma brecha de tempo em que te relato esta gravação do presente! –, decidi ouvir as cores da música de Weber enquanto me pego escrevendo esse relato tão kafkiano, retirado das entranhas de minha própria vida no período aproximado de vinte quatro horas.
Neste momento, escrevendo, já posso respirar, pois transformei a repetição em palavras que se repetirão diferente nos pensamentos de todos os que tiverem tempo para lerem um dia na epopeia de um simples homem no mundo. Sinto que assim renascerá uma legião de espíritos que partirão do porto que fiz em meu peito, pois sei que estarei envelhecendo e morrendo se não compartilhar e transformar o círculo em retas... Meu desejo, com isso, é confeccionar muitas e longas flechas para serem lanças para longe, pois quero evoluir o corpo, esquecer dos espíritos e viver como um comum que apenas nasce, perambula e morre. Tudo sem ao menos inquietar-se sobre o que ocorre dentro de seu próprio âmago, ser novamente apenas um artista da fome que vive alimentado por programas que programam a desnutrição do pensamento crítico da sociedade. Não quero fugir disso. Quero, como antes, acreditar em tudo, ser livre na escravidão da caverna “das oito”, onde o Brasil inteiro raciocina igualmente, sendo FELIZ. 

** Esse texto foi escrito e publicado no dia 2 de junho de 2011, contudo reponho-o para que minhas alunas e meus leitores vejam que tanto o compositor Weber que dei para a Débora quando o Debussy que se deu para Carol, já fizeram de alguma forma parte de minha construção de vida...

7 comentários:

  1. Excelente texto.
    Um prazer ler-te.
    Um bj

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  2. Tem dias que valem por uma semana, mas ainda bem que a semana tem seus momentos bons né?

    Ótimo essa postagem Dilsão! Vc é o cara viu!

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  3. OI!!!

    Agora os dois vão inspirar outras mentes ...

    A rotina as vezes nos dá dias maçantes. O jeito é aprender a escapar deles até que terminem e um novo e renovado dia chegue

    Reflexivo o seu texto, gostei

    Abraço, Lucia Carolina

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  4. Olá Dilso, ao primeiro contato que tomo com o blog do amigo por meio de sua passagem pelo nosso modesto blog e que desde já fico muito grato e honrado, percebo quão sábio é na sua publicação, o que não poderia ser diferente por tratar-se de alguém com tão fino trato com as letras. Sempre quando vejo um blog com riqueza no seu conteúdo, costumo dizer que são blogs que nos convida a pensar, ou seja, fazer uma reflexão. É o que constato vendo seu blog, um convite ao pensar. Parabéns pelo brilhante, sábio e inteligente texto.

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  5. Dilso,
    já é madrugadão e já havia lido este texto, por isso não vou comentá-lo especificamente. Fica brabo? Mas o li de novo, tá bom?
    Fica aqui meu abraço para ti a Carmem, a Eduarda e a Carolie (acertei os nomes?).
    Quem sabe conhecemos tua turminha antes do final do ano, será?
    Ótimo domingo!

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  6. Guilherme da Silveira Pagel30 de outubro de 2011 às 15:52

    Não é a toa que seus papos são tão intelectuais... Percebo agora que o mundo ainda tem chances de salvação, mas pra isso devemos despertar o lado intelectual de nossos mais amigos mais próximos, como você mesmo diz... Não leiam, olhem novelas... Prefiro dialogar com uma pessoa sobre qualquer assunto que seja de interesse mutuo do que ver que minha opinião parece nula para a mesma, ironizando, sempre dizem que as novelas tem o objetivo de demonstrar a realidade, mas eles generalizam muitos fatos, o que não acho correto. Seu texto é muito bom, por enquanto só li este, mas quero virar este blog de cabeça pra baixo... T +...

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  7. Dilso, com um narrador intradiegético sagaz assim, qualquer rotina torna-se refestelante e valorosa literatura.
    Seu conto está repleto de reflexão implícita na crítica e na sutil ironia imperceptíveis a olhares desatentos de nosso dia-a-dia.
    O sabor da narrativa e da linguagem, faz-nos olvidar o tema central, que é algo preterível.
    Com a peroração, depreende-se que o concreto é estático, mas o ideário é cinético.

    Parabéns pela sageza!

    Abraços do amigo de sempre!

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