.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

(4ª parte) NOTAS DE DESACONTESSÊNCIAS: diálogos.

- Pai, por que as pessoas, geralmente, nos julgam pelo que vestimos?
- Porque – para os mais pobres – os olhos são tudo o que têm!
- Hum... entendi! Por isso que o sr. sempre me diz que roupas não sentem?
- Sim, elas traem as expectativas, criam uma falsa impressão de competência para quem só sabe ver. Os olhos, quando sozinhos, nos cegam, filha, é ingenuidade confiar só neles.  
- Sei, mas o que fazer? Nu ninguém podemos ficar.
- Nu é o extremo, mas perfumaria em excesso só sabe esconder nossos cheiros, nos tornar pertences... Faça o seguinte: continue lendo, se vista por dentro e, se não atrapalhar o que te reveste, use os panos que te agradam mais, seja livre, só peço que não deixe o mundo te confundir. Preocupe-se primeiro com o que há por debaixo da pele, ela é quem te veste de verdade e te faz sentir por dentro. Se arranje pra ti. Quanto aos outros. Eles que aprendam a usar melhor seus sentidos para, pelo menos, nos deixar em paz.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

 - O Brasil perdeu, não é pai?
- Fala do futebol?
- Claro, ué!
- Dessa vez perdemos três vezes, filha!
- Três?
- Sim. Pagamos caro o gramado; pagamos caro no gramado; e continuamos pagando caro fora dele.
- Não entendi o último.
- Lembra-se dos foguetes? Acho que, sinceramente, algumas pessoas do povo de origem germânica daqui deveriam ser mais gratas para com a terra que os acolheu.
- Optar por quem torce não é uma atitude democrática, pai?
- Concordo filha, um livre-arbítrio que dá espaço para tudo, até para a perda de senso, para a ingratidão.
- Mas foi só um jogo...
- Sim, um jogo que demonstrou como alguns andam falhos da memória... Foi quase como chegar buzinando no enterro do próprio pai! Ópera dos esquecidos!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Pai, dizem que eu quero ser mais do que os outros.
- Ora, legal!
- Legal? Mas eu não quero ser mais!
- Deve ser sim. Deve ser mais do que as outras que foi. Esse é o a mais que vai te tornar o que deve ser: uma habitação.
- Habitação?
- Sim, cada uma que vai sendo fica morando em ti, organizando-se em uma legião, em uma multidão, em um exército comandado pela maior: a última de você.
- Mas esse mais que me acusam é outro mais, pai!
- Esse mais é menos, filha, fique com o este que digo, ele é que te povoa.
- O que será que pensam de mim essas pessoas? Isso é tão injusto!
- Desde que fiquem para dentro, os pensamentos são livres. Bocas que não sabem ruminar vivem engolindo seus donos pela pressa de dizer. Fique tranquila, deve ser outra coisa!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
- Há uma guerra que pode acontecer ali.
- Onde?
- Ali, aqui, lá... dentro do peito de cada um de nós.
- E o que eu tenho com isso!
- Tudo. Cuidemos de nossas interioridades, elas podem ser belicosas, amáveis ou... Bom, aí depende de como tu resolves as tuas, depende só de negociações.
- O quê? Está pensando em me declarando guerra?
- Só se quiseres! Quer?
- Sim, venha!
- Ah, passou a vontade, aqui dentro estamos em regime de paz. Devo ser um bom diplomata de mim. Só estava praticando contigo e com suas 'estrangeirações'!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
- Como devolver vida a um zumbi, pai?
- Devolvendo alma a eles. Saibas que – ainda bem! – há sempre alguém disposto a soprar vida para dentro de um cadáver abandonado.
- Se há quem sopre, penso que há também os que sugam. Certo, pai?
- Sim, falas dos dentuços: os tais seres que se alimentam de paixões. Como não sabem produzir, fartam-se assim.
- Mas o que ganham com isso? Que fome devem ter, hem?!
- Ganham elementos que revestem imagens elásticas, sutilezas que, para um leigo, até pode confundir-se com competência.
- Como assim?
- Ué, deixam o que está quebrado apodrecendo dentro de seus zumbis (ignoram o que não dá certo) e, ao invés de consertar, maquiam de montanhas o pouco que há.  
- Nossa!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- Há dias em que gosto de Rock, outros de MPB, outros só do silêncio. Se somos o que ouvimos, o que eu sou, pai?
- Podes ser tudo, filha, só o nada é que não podes!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- O que é politeísmo, pai?
- É quando se acredita na existência de vários deuses!
- Acho que vivemos em uma sociedade assim.
- Explique!
- Ora, todos evocam a deus quando estão irritados. Pedem para que se vingue em seus nomes.
- Mas até aí temos um só deus, chamamos isso de monoteísmo.
- Me deixa terminar...
- Certo!
- ... Daí o outro, que também se ofendeu, pede ajuda a um deus que parece estranho ao primeiro, mas ambos juram se tratar de um só.
- Verdade. Ponto de vista interessante. Está ficando afinada, guria!
- Isso não é egoísmo, pai?
- Sim, filha, é um dos tantos que há!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Pai, por que algumas pessoas dizem que os professores não fazem nada? Vejo o Sr. sempre aí lendo, caminhando de um lado para o outro e pensando, não em mim, que eu sei, mas em como explicar de forma clara os conteúdos para seus alunos. Fala até sozinho, às vezes, por isso que eu sei. Dá até ciúmes, sabia? Há momentos em que eu nem sei está mesmo aqui.
- Filha, desculpe por isso! Quanto às pessoas, sim elas se acostumaram a receber tudo pronto, por isso pensam isso de nós. Sabia que o mesmo acontece com os escritores? Alguns indivíduos, por exemplo, leem uma coluna de jornal em cinco minutos, se isso, e nem lhes passa pela cabeça que o mesmo texto pode ter levado horas para ser escrito. Coisas da vida, dos pontos de vista e de nossa incrível incapacidade de olhar para fora de nós mesmos.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
- Por que te preocupas tanto, pai?
- Não sei. Acha que não deveria?
- Acho que não. Parece um reciclador de lixo. Deixe o lixo ser lixo.
- Lixo?
- Pelo o que soube, não tenho nada melhor pra dizer.
- Oh, filha, pode ser! Tu andas bem ácida, hem!
- Só quando a acidez que te jogam respinga em mim!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Ama muito sua esposa, não é?
- Sim. Ela é a melhor.
- Mas você também tem seu valor, amigo!
- Por conta dela...
- E se não a tivesse conhecido?
- Nesse caso um outro teria a sorte de poder ser melhor.
- E você?
- Não. Daí eu não seria este que conheces, quem sabe fosse até um outro menos acontecido. Só que nasci com a bunda virada para a lua, amigão, ela me fez tão rico que nem preciso tanto assim de tostões!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Pai, o Brasil tá ganhando, vai ganhar?
- Não, ele está perdendo, filha!
- Mas para quem?
- Para ele mesmo, para nós mesmos.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Psicologia reversa com uma menininha de seis anos:
- Filha, não me chame de Bo.
- Bo!
- Não me chame de Ni.
- Ni!
- Não me chame de To.
- To!
- Se me chamar de BONITO eu juro que te pego!
- BO-NI-TOOOOOOO... hahahaha....
(e saiu correndo)

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
- Pai, o sr. disse outro dia que o amor é um acontecimento e a sexualidade uma condição, não é?
- Sim, não sei se posso definir isso de forma tão matemática, ambos são imprecisos, mas acho que é próximo disso.
- Ah, tá! É que outro dia, ao discutir isso com um amigo, ele desabafou dizendo que até respeitava as pessoas que são homossexuais, mas não concordava com a opção delas. 
- Filha, diga a ele que não há como optar por isso, não é tão simples como escolher uma roupa, é bem mais complicado. Diga também que a condição humana é complexa e não há contratos estabelecidos de como devemos ser/sentir por dentro, portanto ele não tem o direito de concordar ou discordar do que não lhe pertence, pois não existem manuais de como se deve ser no universo pessoal de nossas interioridades. O que ele deve fazer é só aceitar que o outro é o outro e convencer-se de que isso em nada atrapalha o contrato social (daí sim um contrato) dele com seu semelhante.
- E se ele se ofender?
- Daí pare, respire e em seguida conclua assim: 'Amigo, não julgue as pessoas tendo como media a sua intimidade, a intimidade não está em mérito de concordâncias'. E se isso não resolver, troque de assunto e siga a vida, uma vez que cada um deve saber de si e das verdades que carrega.
- Tá bom, pai! Valeu! 

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Minha mãe e eu:
- Ai, Dilso, chega a me dar arrepios quando tu falas dessa gata!
- A Sofia não era uma gata, mãe, ela era uma verdade que veio para desafiar todas as outras que eu carregava.
- Para, guri, deixe ela descansar!
- Ela está descansando, veio para me dar lições sobre o amor e quando reaprendi, ela se foi, dormiu.
- Eu sei, filho, gostava dela também!

(Silêncio...)

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- Pai, não tenho certeza, mas um dia penso em estudar filosofia!
- Ótimo, filha!
- O problema é que todo mundo acha que isso não dá futuro.
- Ah, o mundo está cheio de 'todo-mundo'! Sugiro que ouça o mundo todo que anda gritando por dentro de ti, essa é a voz que importa.
- Mas e o futuro, pai?
- O futuro não existe, ele é um agora desejoso por amanhãs. Estamos no futuro de ontem, para que tenhas uma ideia. Só não deixe os outros decidirem o que deves ser.
- E o que acha que serei?
- Tu serás algumas outras que poderão mudar para mais outras sempre que desejar.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- Homens beijam uns aos outros, pai?
- Claro, por que não beijariam?
- Digo, dois homens.
- Sim.
- Há pessoas que acham isso ruim.
- Ruim é não amar.
- E a sexualidade?
- Ah, filha, não se mede a moral de alguém com base no que fazem na intimidade! O amor é um acontecimento, o sexo uma condição.
- Também penso assim, pai!
- Claro que pensas, és inteligente, ora!

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- Pai, fico triste quando as pessoas me chamam de baixinha.
- Não fique. Tu tens o tamanho exato de tua raça.
- Como assim? Há raça para os pequenos?
- Não. Há a raça de ti mesma, que é elástica. Tamanho? Deixe essa avaliação para os fabricantes de peças e seus padrões.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Pai, quando sentimos que estamos preparados para ler um livro?
- Quando tu o desejas! Livros são silêncios famintos por vozes - e o desejo é o que nos move a emprestar as nossas. Querer não é o bastante.
- Não? Por quê?
- Porque o querer não pega fogo, não nos faz explodir.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
- Por que não escreve um livro?
- Não posso!
- Como não pode, vive escrevendo?!
- É diferente, escrevo para mim mesmo.
- Mas se fizesse seria um escritor, um poeta...
- Entupir páginas não fazem escritores, muito menos poetas. Não sei me gastar assim, o que tu lês são excessos de mim. Colocá-los em um volume seria como se eu lapidasse uma escultura ao contrário, uma obra feita de lascas.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Pai, por que é que de vez em quando tu dá um de seus livros? Cuida deles tão bem. Devem ser caros.
- Os livros pertencem ao mundo, filha, se eu os comprei, não importa: eles têm sede de vozes.
- Entendo. Mas eu sei que escolhe bem para quem dar. Por que então não entrega a todos?
- Nem todos sabem que possuem pensamentos líquidos.
- Líquidos?
- Sim, o fluído que faz florescer, não os livros, mas quem os rega de imagens.
- E como sabe para quem dar?
- Não sei. Converso, percebo os olhares quando falo deles e os próprios acabam caindo de minha estante. A verdade é que os livros que tenho são uns oferecidos.

(risos...)

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
 - Pai, o sr. acha que Charles Chaplin foi único?
- Certamente, mas os sorrisos que ele ainda causa são muitos, sempre novos.
- E o Hitler, também foi único?
- Sim, sorte nossa, um já fez estrago demais...

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

- Pai, olhe esse vídeo! Sabe de quem é?
- De quem?
- Charles Chaplin. Como o bigode dele lembra o do Hitler, não acha?
- Lembra sim. Viveram quase no mesmo tempo, só que um lá, outro acolá.
- Sim, nota-se às distâncias: uma que nos desperta; outra que nos corrói, nos envergonha. Sabe, pai, não dá para levar a sério dois bigodinhos tão engraçados, mas prefiro rir com Chaplin, esse sim sabia amar. Foi um gênio do riso e dos silêncios, ele dizia tanto, não precisava gritar como fazia o outro.  

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
- Parece embochechado. Olhos pequenos...
- Doença, filha!
- Que doença é essa que faz sorrir?
- Paixão. Fui contagiado.
- Por quem?
- Por um espírito!
- Hã?!
- Ah, um que se soltou de um professor apaixonado!
- Pelo visto te enfebrou, pai!
- Ainda bem. Minha parte "mestre" agora volta a se sentir calibrada e de volta à brasa dos amantes.

~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Divida conosco suas impressões sobre o texto!