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domingo, 13 de fevereiro de 2011

AS MÃOS DE EURÍDICE, de Pedro Bloch

  “Não despreze estes livrinhos antigos. Este traz uma cômica tradução de vida.”
  Essa foi a frase que encontrei logo no início de uma obra esquecida e amarelada nas tristes prateleiras de um “sebo”. Um livrinho, como na dedicatória, de uma edição bastante antiga e que conta, em um monólogo dividido em dois atos, as frustrações de Gumercindo Tavares – personagem fascinante.
  Ao tê-lo resgatado pela ridícula bagatela de R$ 1,50, (juntamente com “A Morte de Ivan Ilitch”, de Léon Tolstoi, R$ 4,00; e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, por R$ 5,00) nada me faria desfazer-se desse fascinante ‘pocket’, pois a vida tragicamente cômica corre solta nos relatos e nas entranhas de nosso incrível protagonista, Gumercindo. Mas incrível mesmo é o que se pode fazer com apenas R$ 10,00 em um “sebo” (ganhando, inclusive, um desconto de R$ 0,50. Podem acreditar!).
  Ao ser enfeitiçado pela dedicatória, conforme explicito no início desse relato (confeccionada e assinada por Carmen Hech – e é justo citá-la, mesmo sem conhecê-la), não tive dúvidas em degustar o trabalho de forma a tentar interpretar, em voz alta, o que exigia cada cena. A espontaneidade, conforme o ritmo ia se estabelecendo, logo se transformou em uma prática que ia além de uma simples tentativa interpretativa, tornou-se, aos poucos, visceral, simbiôntica... A história, metaforicamente enredada pelo mito de Orfeu e Eurídice, ganha forma em ambientação contemporânea e um formato metonímico (a parte pelo todo), forçando-nos a conhecer as mulheres da obra, apenas, através de restritas descrições de suas mãos, primeiramente, a amante, Eurídice, e em uma outra intenção, mais para o final da obra, transmudar-se para Dulce (esposa de Gumercindo).
  No mito grego, Orfeu, dotado de dotes musicais herdados de seus pais, Calíope (uma das nove musas) e Apolo (deus Olímpico), consegue convencer Caronte a levá-lo ao mundo subterrâneo de Hades, onde se encontra Eurídice. Uma vez lá, depois de ter negociado com o deus – que só ouvi-o por conta de seu belo desempenho musical – deixou que a tão desejada Eurídice fosse embora com ele. Mas não foi tão simples assim, a condição obrigava-o a não voltar o olhar para trás, senão sua amada tornar-se-ia poeira voltando para o seu destino: a morte.
  Em “As mãos de Eurídice”, de Pedro Bloch, não foi diferente. Contaminado pela jogatina e perturbado com a beleza de Eurídice, Gumercindo, deixa esposa (Dulce) e filhos, levando todas as economias da família, para seguir para Buenos Aires e gastá-las nas roletas de cassinos platinos em companhia – é claro! – de sua amante. Naturalmente o dinheiro acabou, pois as mãos de Eurídice perdiam-nos “graciosamente”. Quando tudo se transformou em poeira, a amante também se foi, dando margem para o protagonista refletir e voltar para casa depois de longos sete anos (referentes aos sete pecados capitais).
  Sabendo que a literatura, em uma visão particular, nada mais é do que o olhar sensível de alguém no mundo. Podemos perceber, na história como um todo até a idiossincrasia de um único sujeito (o autor), elementos que nos permitem refletir sobre a complexidade do homem e o impacto de suas atitudes no mundo.
  Quanto ao autor, Pedro Bloch (1914-2004) – além de dramaturgo – foi médico, jornalista, compositor, poeta e autor de várias obras infanto-juvenis. Sua família era oriunda da Ucrânia, mas Bloch naturalizou-se brasileiro. Chegou, inclusive, a lecionar na PUC do Rio de Janeiro. Seus trabalhos como escritor soma-se em um acervo de mais de cem livros, grande parte destinada ao público infanto-juvenil. Dizem que muitas de suas obras foram inspiradas por crianças enquanto clinicava como médico em determinado momento de sua vida.
  Contudo, esse é um trabalho maravilhoso e digno de ser vislumbrado em um teatro com um ator a altura. Difícil é traduzir com palavras todo o encantamento provocado por essa excelente pintura da vida. Trabalho Inefável, inquietante, simplesmente um achado em meio a traças que corroem e mal tratam todo um acervo de clássicos deixados para trás pela moderna e sufocante preferência por “obras menores” – falo dos ‘best-sellers’ – que nos furtam a possibilidade de um caráter catártico de descobertas verdadeiramente humanas.
  Gostaria que todos sentissem um pouco do que senti ao lê-lo. Espero que, assim, nas vísceras de todos os leitores curiosos, a obra se torne um elemento de autorreflexão e prazer. Procurem-na, leiam e entendam o meu estado...
  Isso é tudo!!!

sábado, 2 de outubro de 2010

Os teares da escrita e a importância de tecer

  O tecido pode ser o melhor condutor para sentirmos que o prazer pode ser experimentado, também, através das pontas de nossos dedos... O mundo compreendido pelo tato pode fazer com que reflitamos sobre algo mais do que o simples fim e a futura utilidade que o pano terá. O tipo de fio, a maneira como ele foi tramado e, enfim, a forma que tomou, contribui para que aprendamos sobre as várias texturas até que possamos, finalmente, poder tecer – fiando com nossas próprias linhas coloridas – uma “fazenda” (do verbo fazer) que muitos poderão observar, sentir e compreender como uma contribuição nossa para o mundo.
  Ao lermos boas obras com atenção, infalivelmente, sentiremos em seus veludos, desde um simples véu até as mais finas das sedas, pois é necessário primeiro sentir para depois fazer-se sentir pelos tecidos produzidos dentro de nossos próprios teares. Sabendo disso, não é difícil perceber a relação de tessitum, tecido, textura, texto...
  Enfim, ao contrário do que muitos pensam, o ato de produzir um texto não está vinculado a nenhuma força divina que nos sopra aos ouvidos e nos vem inspirar. A palavra chave para uma boa produção textual é ‘trabalho’. Deve-se cultivar o hábito da leitura e submeter suas produções a releitura, a reescrita e – fundamentalmente – à crítica (pedir para que outros sintam a textura e apontem para os fios soltos que precisam ser consertados). Estes são alguns elementos que fazem parte dessa construção. A atenção a esses pontos é essencial para que não se abandone o processo de estar sempre trabalhando com ideias já desenvolvidas. Pois o texto, assim como nosso conhecimento de mundo, sempre está em constante transformação. E é assim que vamos dando forma e cor aos nossos tecidos.
  Agora é sentar, puxar um fio e começar a tramá-lo.

domingo, 6 de junho de 2010

NO AMOR E NA MORTE


   - Meu amor!
   Assim chamavam o pequeno Felipe...
   Quando se conheceram, Damião e Maria Tereza, logo se entenderam. A paixão os levou para casa, para a cozinha, para o quarto e acabaram por satisfazer-se, apropriadamente, na cama. Tudo estava perfeito, porém o fogo que queimou não estava em nível incendiário. O plano original, pós-flerte, devia ser assim: cada um para seu lado. Os dias, as semanas, os meses passaram. Maria Téia estava grávida. Até localizar o homem, passaram-se mais tempo. Enfim, reencontraram-se e acertaram-se por conveniência.
   - O amor é coisa que a convivência traz. - dizia ele.
   O amor realmente o trouxe, seu nome já o dissemos. Felipe nasceu raquítico, traços chupados e com uma tristeza aparente no olhar. A vida tornara-se tumultuada para a nova família. O que deveria ser um presente, logo se tornou um grande estorvo. As chagas abateram o menino alinhavando marcas de velhice desnudadas por problemas graves de saúde.
   - Esse guri está podre, Téia!
   - Cala a boca, ele é apenas uma criança!
   A piedade da mãe durou apenas até a factual notícia: O amor estava em estado crítico, não apenas terminal, mas em um estágio contagioso. Toda a solução se encontrava no celeiro abandonado. Alí apenas um velho cavalo perecia e, certamente, seria um bom lugar para afastar a doença de Felipe do resto das pessoas da casa. Os dias longamente passavam e o garoto já incapaz de alimentar-se com a parca comida que vinha, começou a ofertá-la inteiramente ao cavalo que, alimentado pelo velho amor que morria, em troca, lambia suas feridas. As noites foram duras naquele inverno e o pangaré e seu amigo, para se protegerem do frio, enroscavam-se quase a formar um mesmo corpo.
   - Meu Amor, – a voz vinha da mãe – onde está?
   O menino fora encontrado morto em meio ao feno, aparentemente, sufocado. O animal relinchava em estridente tristeza, mexia-o com o próprio focinho, mordiscava suas roupas, mas nada acontecia.
   - O cavalo matou Felipe! - ouvia-se de longe.
   O equino não resistira aos castigos e acabara morrendo no mesmo dia. Mas uma coisa boa aconteceu. A morte do garoto tornou certo o destino verdadeiro de cada um e todos os antigos planos puderam ser seguidos.
   Quanto aos pais, esses finalmente encontraram a paz.