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sábado, 9 de julho de 2011

NUNCA PEGUE O PRIMEIRO CIGARRO E NEM O PRIMEIRO LIVRO...**

Em uma das mãos a “pena” e por entre os dedos da outra, uma fumaça vai esvaziando-me o peito... Enquanto a primeira, a cada palavra, delineia e acerta os pontos dos pensamentos; a outra vai regulando os humores (todos eles!) até encher o espaço de cinzas de onde espero renascer um espírito reorganizado. Confesso que as duas neblinas só fazem infestar o mundo de “mundices” que insistem em sair de mim, pois quando os pulmões insuflam-se de fumaça, solto, na mistura, um pouco da própria alma que teima – mesmo intoxicada – em desenhar pelos ares o ‘não-lugar’: o retrato em movimento de uma Quimera sendo vencida por algum Belerofonte oculto por entre as nuvens saídas de mim; um verdadeiro Quixote inquietado por moinho de ventos...
Quando lemos, igualmente, ‘tragamos’ as ideias diluídas muitas vezes em medidas de tempos, espaços e ações de seus personagens, enquanto a fumaça tragada vai soltando um pouco de vida roubada para completar um fio particular de neblina a ser lançada de volta ao mundo com um pouco de nós... Isso tudo – já advirto! – faz muito mal à saúde, porque nos vai tomando a alma para completar pinturas esfumaçadas na moldura inexata do mundo, criando obras tão paradoxais que vão dançando e nos mostrando que existe um céu por detrás da densa poluição. Fumaças que entristecem na proporção em que nos vamos dando conta de que na verdade, antes, nós é que vivíamos nos limites de outras neblinas... até, finalmente, descobrirmos que os ares podem também ter um pouco de nós, mesmo pelo mote negativo de vícios imprimidos por nossos próprios sopros.
Portanto, amigo, para que não sofra com esses tipos de maluquices politicamente incorretas, nunca pegue o primeiro cigarro e nem o primeiro livro. O ministério da saúde com toda certeza e razão agradecerá se não fumarem! Quanto aos políticos, esses ficarão gratos por mais quatro anos se não lerem, pois livros por aqui são tão pejorativos quanto o fumo...

Obs: Caro leitor, estou ciente de que não é saudável minha inspiração, porém não posso, mentindo, te desrespeitar, já que gastou seu tempo acompanhando este devaneio até aqui. Sabe, "a verdade tem pernas compridas e pisa por caminhos mentirosos" (Mia Couto). Daí o meu compromisso contigo! 


** Entrego esta reflexão a minha amiga Roseane, pois encontrei-a segunda à noite na UNISC, onde tivemos a chance de prestigiar uma palestra muito boa sobre literatura russa. Ouvir um leitor apaixonado e ter outra sentada ao seu lado durante a evolução das falas, foi uma experiência muito positiva apesar da baixa temperatura... 
Acredito que em São Petesburgo é bem pior, mas estava um bocado frio naquela noite... Contudo valeu a pena!!!! 

sábado, 28 de maio de 2011

QUANDO AS CRIATURAS DE EÇA DE QUEIROZ E DE MACHADO DE ASSIS SE ENCONTRARAM...**

A Madame de Juarre
  
Brasil, agosto.

Minha extraordinária madrinha.

  Eis que me encontro aqui neste outro continente. Parece-me que a tal ponto e distância, como em degredo, as imagens de uma terra familiar às vezes me tornam e atormentam os pensamentos: saudades dos gentílicos lisboetas.
  Ontem – como forma a restituir imagens deixadas em Portugal – resolvi tomar sol em uma praça próxima onde minha tão silenciosa existência não alterava nada. Esse, sem dúvida, seria o lugar ideal para que o mais culpado dos homens pudesse descansar de seus tormentos e repousar em bancos de certa maneira confortáveis. Decidi então me acomodar por alí mesmo, aqueles ares pareciam me fazer bem. O fato resume-se apenas em querer gozar daquele dia pensando estar novamente em minha terra.

  Doravante, deixando para trás saudades e queixumes, - veja o que me trouxe à realidade! - encontrei ao largo de um logradouro paralelo a tal praça, duas figuras extremamente interessantes: uma palestrando para poucas almas; a outra calada fielmente ao seu lado apenas deixando escapar olhares quase humanos: era um cão. Ao inserir-me em meio ao pequeno grupo de ouvintes, deleitei-me com a sabedoria da tal personagem que mais tarde apresentou-se a mim como Senhor Borba.
  Veja só, minha senhora, que a estranha filosofia de tal criatura me fez condoer-me à situação humanitária, pois sabes bem que não estou preso a nada e muito menos a valores eleitos ou distribuídos por alguém, contudo não me considero filantropo e menos ainda um misantropo, estou entre um e outro; um pecador talvez. Aliás, após o nosso último encontro (de Sr. Borba e eu) não me preocupei com o tempo, deveras o deixei discorrer à vontade. Dialogamos sobre tudo, inclusive a respeito de sua - dita por ele mesmo – “Filosofia Humanita”, disposta em parábola interessante. Um dia lhe conto pessoalmente sobre essa história que relata a luta pela sobrevivência e a situação em que se fez das batatas prêmio maior aos vencedores... Por hora é isso. Seu afilhado do coração,
                                                                                                                                                                                            Fradique Mendes.

** Esse texto tem como pretensão ser um apócrifo (uma carta que não está publicada entre as tantas que Fradique Mendes escreveu). Como Eça de Queiroz e Machado de Assis viveram na mesma época, porém um em Portugal e outro no Brasil, pensamos em aproximar, se não os criadores, pelo menos as criaturas: Fradique e Quincas.
Ofereço essa produção ao amigo e poeta português (que é de fato português/lusitano), JORGE PIMENTA. Com o desejo que tenha feito uma leitura proveitosa, deixo aqui meu abraço!

sábado, 7 de maio de 2011

NÃO PERDEMOS... TORNAMOS-NOS ALBATROZES!

  Hoje percebi que não há grilhões densos o bastante para conter o espírito de um povo sabedor de seus direitos e indignado por ter que usar a força para, minimamente, garanti-los. A intensidade dos desafios ultrapassados – falo da greve dos funcionários público-municipais santa-cruzenses – e das lutas diárias cujo objetivo foi o de (re) encontrar a dignidade, teve, momentaneamente, suas asas aparadas; contudo não há quem possa ou tenha o poder suficiente para amputá-las definitivamente: elas voltarão a crescer... Semelhante ao albatroz baudelaireano preso ao convés da nau de seus algozes (onde tinha de respeitar o limite de apenas andar e, por conta disso, ser atormentado com risos e deboches por ser desajeitado no chão), também não suportamos mais o assoalho desse navio imundo, já que conhecemos juntos o CÉU e a envergadura das asas que temos para ganhá-lo. Abramo-las imponentes, pois o azul celeste nos provoca a alçar voos ainda mais altos; celebramos por, agora, sabermos disso e deixemos de ser humilhados por esses piratas que nos saqueiam e roubam-nos as “penas”...
  Enfim, confesso ao mundo que chorei, mas de orgulho dos albatrozes que voaram alto e resistiram comigo... Obrigado!

** Dedico esse pequeno texto a todos os colegas que tiveram a coragem e a sabedoria de unirem forças contra a arrogância ditatorial de nossos administradores munícipes. Cito também, em especial, – e é justo que o faça! – alguns amigos de luta: Rodrigo, pelo equilíbrio que nos uniu em um ambiente tomado por emoções e razões variadas; ao Mauro, detentor de uma sensibilidade rara em perceber a energia contida nos ritmos inflamados dos discursos; ao Adriano, o mais sóbrio e um dos mais sábios entre nós; ao Rafael, estudante de História e colega de trabalho (primeiro por ter vaiado o Dep. “To me lixando...”, em momento oportuno; segundo por ter me presenteado com um raro volume de Marcel Proust – magnífico!); e por último, mas não menos importante, ao nosso líder sindical, Almada, por ser o grande mestre dos discursos e nosso mais importante membro da causa.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

OS TEARES DA ESCRITA E A IMPORTÂNICA DE TECER**

  O tecido pode ser o melhor condutor para sentirmos que o prazer pode ser experimentado, também, através das pontas de nossos dedos... O mundo compreendido pelo tato pode fazer com que reflitamos sobre algo mais do que simplesmente o fim e a futura utilidade que o pano terá. O tipo de fio, a maneira como ele foi tramado e, enfim, a forma que tomou, contribuirá para que aprendamos sobre as várias texturas até que possamos, finalmente, poder tecer – fiando com nossas próprias linhas coloridas – uma “fazenda” (do verbo fazer) que o mundo olhará, sentirá e saberá que foi feita pelas nossas mãos.
  A construção de ideias utilizando-se das palavras é isso (não é à toa a relação: tessitum, tecido, textura, texto...). Ao lermos boas obras, fatalmente, sentiremos os seus veludos, desde um simples véu até as mais finas das sedas. É necessário primeiro senti-los para depois fazer-se sentir pelos tecidos produzidos dentro de nosso próprio tear.
  Para tanto devemos ter consciência de que para construir é necessário às vezes desconstruir. Peguemos o exemplo da rainha de Ítaca: todos conhecem – acreditamos – a história dessa grande personagem épica. Na voz de Homero, dentro da primeira parte da Odisseia, encontramos Telêmaco, (filho de Odisseu e Penélope, governantes de Ítaca) aturdido e assediado pelos pretendentes de sua mãe que já estavam de olho no trono. Todos sabem que Odisseu, após ter ajudado a conquistar Troia, passou muitos anos tentando voltar para casa. Seus compatriotas, naturalmente, já não acreditavam que um dia ele retornaria. Inclusive, algumas pessoas fomentavam a ideia de que a rainha deveria casar-se novamente, o que fez crescer o número de candidatos ao matrimônio e, em consequência, ao trono. Penélope, já sem argumentos, decidiu então que se casaria novamente, mas antes precisaria tecer uma mortalha em homenagem à memória de Odisseu. Ao mesmo tempo em que a obra ia tomando forma em suas tessituras diurnas, à noite, tomada por um sentimento de esperança de que o marido retornasse, a mulher desmanchava a mortalha para no dia seguinte retomar e ganhar ainda mais tempo. Contudo, sabemos que para alegria de Telêmaco e Penélope, Odisseu finalmente teve o tempo que necessitava para conseguir retornar e vencer todos aqueles que desrespeitaram sua família e seu reino.
  Na maioria das vezes, ao confeccionarmos nossos tecidos, precisamos desfiá-los e reformulá-los. O mais incrível é que, assim como Penélope, ganhamos tempo com isso, pois o processo que permeia a composição e a trama das linhas depende muitas das vezes em que nos propusermos a retornar ao ponto de partida. Insistirmos no processo, alheios à crítica dos toques, resultará em panos falhados e cheios de nódulos quebradiços à sensibilidade dos dedos que possivelmente os sentirão. Nesse momento, mesmo a contra gosto, devemos aceitar o ponto de vista e o tato de outrem e não ter medo de recomeçar, dessa vez, acertando melhor os pontos observados. Para os que creem que Penélope não chegou a lugar algum com sua paciência, pensem que na verdade ela confeccionava algo muito maior do que uma mortalha, ela tecia com o TEMPO na perca e no ganho de sua construção e desconstrução. Ao invés de uma indesejável mortalha, a rainha teve de volta tudo o que perdera, uma vez que se permitiu perder para, no final das contas, ganhar. Imaginem se ela terminasse esse tal pano dos mortos? Odisseu certamente teria mais uma epopeia para enfrentar. Ao invés disso, Ítaca acabou tornando-se um grande tear onde as boas novas acabaram sendo, no final, bem amarradas pelas linhas do tempo e pelas mãos hábeis da rainha de Ítaca, que conseguiu tramar um pano esplêndido e bem sucedido.
  Enfim, esclarecendo, ao contrário do que a grande maioria pensa, o ato de produzir um texto não está vinculado a alguma força divina que nos sopra aos ouvidos e nos vem inspirar. A palavra chave para uma boa produção textual é ‘trabalho’. Deve-se cultivar o hábito da leitura e submeter suas produções a releituras, a reescritas e – fundamentalmente – à crítica (pedir para que outros sintam a textura e apontem para os fios soltos que precisam ser concertados ou refeitos). Estes são alguns elementos que fazem parte dessa construção. A atenção a esses pontos é fundamental para que não se abandone o processo de estar sempre trabalhando com ideias que já se desenvolveu. Pois o texto, assim como nosso conhecimento de mundo, sempre está em constante transformação. E são todos esses elementos que vão dando forma e cor aos nossos tecidos.
  Agora, com posse da linha, é sentar, puxar um fio e começar sua trama...

** Texto reformulado, ampliado e revisto. Ofereço a todos os meus amigos da blogosfera, grandes tecelões. 

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O MORTO*

  Sentado na poltrona de sempre, lá estava ele de novo em seu refúgio. Óculos sobre o nariz, pernas cruzadas e um velho livro repousando aberto sobre suas mãos. Os olhos acompanhavam as palavras nervosamente enquanto a mão direita virava a página quando necessário. Dessa forma o tempo passava, até o sono aparecer de mansinho e oscilar entre a história e o sonho. Adormeceu... 
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  Deu uma boa olhada em volta e confirmou: estava sozinho. Em certos momentos, mesmo na boa companhia de sua esposa, tinha a necessidade de refugiar-se dentro de si, de modo que o espírito se emancipasse do corpo físico por alguns instantes. No entanto, no cômodo ao lado, um murmúrio quebrou o transe. Andou até lá.
  - Pobre coitado, como pode uma santa criatura nos deixar assim? Não tinha maldade, não bebia... Homem admirável!
  Assim que entrou na sala, ao ver as comidas e bebidas, não teve dúvidas em desfrutar daquele banquete e sentar-se ao lado das pessoas que também comiam. As carnes dos pastéis ainda estavam frescas, mas o vinho parecia intragável. A massa daquele bolo tinha um aspecto esbranquiçado, alvíssimo, talvez por não ter tido tempo de ser assado devidamente. Ficou furioso e desgraçou o péssimo cozinheiro.
  - Um ser humano educado, exemplar vizinho e sempre atencioso com todos. Sua nobreza era incontestável...
  Soltou o prato sobre a mesa e, surpreso, deparou-se com um caixão repousado bem no meio da sala. Chegou perto, contemplou o rosto do defunto e então percebeu que já o conhecia de algum lugar. Mas quem seria? Ao levantar a cabeça, acima do cadáver, deu de cara novamente com o rosto do falecido. Tratava-se de seu próprio reflexo reproduzido em um espelho antigo que adormecia por muitos anos bem no centro daquela parede.
  - Coitado, nem ao menos herdeiros deixou...
  - Dizem que morreu por causa de um Emplastro!
  - Emplastro?!
  Desconsolado, entendendo agora com clareza os fatos, retornou em passos lentos para o local de onde havia saído. As qualidades ficavam e os defeitos já estavam destinados a ir, junto ao corpo Santo, em direção à cova e aos vermes que os corroeriam lentamente. - Matamos o tempo; mas o tempo nos enterra - pensou. Acomodou-se novamente na velha poltrona e adormeceu.
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  - Joaquim, Joaquim**...
 Sem resposta ao chamado, Carolina***, deixando ele então descansar, apenas recolhe o livro abandonado sobre as pernas do marido, fecha-o e observa:
  - Hum, Memórias Póstumas de Brás Cubas...


* Com este conto fui premiado como primeiro cololocado no Concurso literário que comemorava os 100 anos da morte de Machado de Assis, os 100 anos de nascimento de Guimarães Rosa e Cyro Martins, pela UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul (2008).

** Joaquim Maria Machado de Assis.
*** Carolina Augusta Xavier de Novaes (foi esposa de Machado).

domingo, 13 de fevereiro de 2011

AS MÃOS DE EURÍDICE, de Pedro Bloch

  “Não despreze estes livrinhos antigos. Este traz uma cômica tradução de vida.”
  Essa foi a frase que encontrei logo no início de uma obra esquecida e amarelada nas tristes prateleiras de um “sebo”. Um livrinho, como na dedicatória, de uma edição bastante antiga e que conta, em um monólogo dividido em dois atos, as frustrações de Gumercindo Tavares – personagem fascinante.
  Ao tê-lo resgatado pela ridícula bagatela de R$ 1,50, (juntamente com “A Morte de Ivan Ilitch”, de Léon Tolstoi, R$ 4,00; e “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, por R$ 5,00) nada me faria desfazer-se desse fascinante ‘pocket’, pois a vida tragicamente cômica corre solta nos relatos e nas entranhas de nosso incrível protagonista, Gumercindo. Mas incrível mesmo é o que se pode fazer com apenas R$ 10,00 em um “sebo” (ganhando, inclusive, um desconto de R$ 0,50. Podem acreditar!).
  Ao ser enfeitiçado pela dedicatória, conforme explicito no início desse relato (confeccionada e assinada por Carmen Hech – e é justo citá-la, mesmo sem conhecê-la), não tive dúvidas em degustar o trabalho de forma a tentar interpretar, em voz alta, o que exigia cada cena. A espontaneidade, conforme o ritmo ia se estabelecendo, logo se transformou em uma prática que ia além de uma simples tentativa interpretativa, tornou-se, aos poucos, visceral, simbiôntica... A história, metaforicamente enredada pelo mito de Orfeu e Eurídice, ganha forma em ambientação contemporânea e um formato metonímico (a parte pelo todo), forçando-nos a conhecer as mulheres da obra, apenas, através de restritas descrições de suas mãos, primeiramente, a amante, Eurídice, e em uma outra intenção, mais para o final da obra, transmudar-se para Dulce (esposa de Gumercindo).
  No mito grego, Orfeu, dotado de dotes musicais herdados de seus pais, Calíope (uma das nove musas) e Apolo (deus Olímpico), consegue convencer Caronte a levá-lo ao mundo subterrâneo de Hades, onde se encontra Eurídice. Uma vez lá, depois de ter negociado com o deus – que só ouvi-o por conta de seu belo desempenho musical – deixou que a tão desejada Eurídice fosse embora com ele. Mas não foi tão simples assim, a condição obrigava-o a não voltar o olhar para trás, senão sua amada tornar-se-ia poeira voltando para o seu destino: a morte.
  Em “As mãos de Eurídice”, de Pedro Bloch, não foi diferente. Contaminado pela jogatina e perturbado com a beleza de Eurídice, Gumercindo, deixa esposa (Dulce) e filhos, levando todas as economias da família, para seguir para Buenos Aires e gastá-las nas roletas de cassinos platinos em companhia – é claro! – de sua amante. Naturalmente o dinheiro acabou, pois as mãos de Eurídice perdiam-nos “graciosamente”. Quando tudo se transformou em poeira, a amante também se foi, dando margem para o protagonista refletir e voltar para casa depois de longos sete anos (referentes aos sete pecados capitais).
  Sabendo que a literatura, em uma visão particular, nada mais é do que o olhar sensível de alguém no mundo. Podemos perceber, na história como um todo até a idiossincrasia de um único sujeito (o autor), elementos que nos permitem refletir sobre a complexidade do homem e o impacto de suas atitudes no mundo.
  Quanto ao autor, Pedro Bloch (1914-2004) – além de dramaturgo – foi médico, jornalista, compositor, poeta e autor de várias obras infanto-juvenis. Sua família era oriunda da Ucrânia, mas Bloch naturalizou-se brasileiro. Chegou, inclusive, a lecionar na PUC do Rio de Janeiro. Seus trabalhos como escritor soma-se em um acervo de mais de cem livros, grande parte destinada ao público infanto-juvenil. Dizem que muitas de suas obras foram inspiradas por crianças enquanto clinicava como médico em determinado momento de sua vida.
  Contudo, esse é um trabalho maravilhoso e digno de ser vislumbrado em um teatro com um ator a altura. Difícil é traduzir com palavras todo o encantamento provocado por essa excelente pintura da vida. Trabalho Inefável, inquietante, simplesmente um achado em meio a traças que corroem e mal tratam todo um acervo de clássicos deixados para trás pela moderna e sufocante preferência por “obras menores” – falo dos ‘best-sellers’ – que nos furtam a possibilidade de um caráter catártico de descobertas verdadeiramente humanas.
  Gostaria que todos sentissem um pouco do que senti ao lê-lo. Espero que, assim, nas vísceras de todos os leitores curiosos, a obra se torne um elemento de autorreflexão e prazer. Procurem-na, leiam e entendam o meu estado...
  Isso é tudo!!!

sábado, 2 de outubro de 2010

Os teares da escrita e a importância de tecer

  O tecido pode ser o melhor condutor para sentirmos que o prazer pode ser experimentado, também, através das pontas de nossos dedos... O mundo compreendido pelo tato pode fazer com que reflitamos sobre algo mais do que o simples fim e a futura utilidade que o pano terá. O tipo de fio, a maneira como ele foi tramado e, enfim, a forma que tomou, contribui para que aprendamos sobre as várias texturas até que possamos, finalmente, poder tecer – fiando com nossas próprias linhas coloridas – uma “fazenda” (do verbo fazer) que muitos poderão observar, sentir e compreender como uma contribuição nossa para o mundo.
  Ao lermos boas obras com atenção, infalivelmente, sentiremos em seus veludos, desde um simples véu até as mais finas das sedas, pois é necessário primeiro sentir para depois fazer-se sentir pelos tecidos produzidos dentro de nossos próprios teares. Sabendo disso, não é difícil perceber a relação de tessitum, tecido, textura, texto...
  Enfim, ao contrário do que muitos pensam, o ato de produzir um texto não está vinculado a nenhuma força divina que nos sopra aos ouvidos e nos vem inspirar. A palavra chave para uma boa produção textual é ‘trabalho’. Deve-se cultivar o hábito da leitura e submeter suas produções a releitura, a reescrita e – fundamentalmente – à crítica (pedir para que outros sintam a textura e apontem para os fios soltos que precisam ser consertados). Estes são alguns elementos que fazem parte dessa construção. A atenção a esses pontos é essencial para que não se abandone o processo de estar sempre trabalhando com ideias já desenvolvidas. Pois o texto, assim como nosso conhecimento de mundo, sempre está em constante transformação. E é assim que vamos dando forma e cor aos nossos tecidos.
  Agora é sentar, puxar um fio e começar a tramá-lo.

domingo, 6 de junho de 2010

NO AMOR E NA MORTE


   - Meu amor!
   Assim chamavam o pequeno Felipe...
   Quando se conheceram, Damião e Maria Tereza, logo se entenderam. A paixão os levou para casa, para a cozinha, para o quarto e acabaram por satisfazer-se, apropriadamente, na cama. Tudo estava perfeito, porém o fogo que queimou não estava em nível incendiário. O plano original, pós-flerte, devia ser assim: cada um para seu lado. Os dias, as semanas, os meses passaram. Maria Téia estava grávida. Até localizar o homem, passaram-se mais tempo. Enfim, reencontraram-se e acertaram-se por conveniência.
   - O amor é coisa que a convivência traz. - dizia ele.
   O amor realmente o trouxe, seu nome já o dissemos. Felipe nasceu raquítico, traços chupados e com uma tristeza aparente no olhar. A vida tornara-se tumultuada para a nova família. O que deveria ser um presente, logo se tornou um grande estorvo. As chagas abateram o menino alinhavando marcas de velhice desnudadas por problemas graves de saúde.
   - Esse guri está podre, Téia!
   - Cala a boca, ele é apenas uma criança!
   A piedade da mãe durou apenas até a factual notícia: O amor estava em estado crítico, não apenas terminal, mas em um estágio contagioso. Toda a solução se encontrava no celeiro abandonado. Alí apenas um velho cavalo perecia e, certamente, seria um bom lugar para afastar a doença de Felipe do resto das pessoas da casa. Os dias longamente passavam e o garoto já incapaz de alimentar-se com a parca comida que vinha, começou a ofertá-la inteiramente ao cavalo que, alimentado pelo velho amor que morria, em troca, lambia suas feridas. As noites foram duras naquele inverno e o pangaré e seu amigo, para se protegerem do frio, enroscavam-se quase a formar um mesmo corpo.
   - Meu Amor, – a voz vinha da mãe – onde está?
   O menino fora encontrado morto em meio ao feno, aparentemente, sufocado. O animal relinchava em estridente tristeza, mexia-o com o próprio focinho, mordiscava suas roupas, mas nada acontecia.
   - O cavalo matou Felipe! - ouvia-se de longe.
   O equino não resistira aos castigos e acabara morrendo no mesmo dia. Mas uma coisa boa aconteceu. A morte do garoto tornou certo o destino verdadeiro de cada um e todos os antigos planos puderam ser seguidos.
   Quanto aos pais, esses finalmente encontraram a paz.