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segunda-feira, 22 de junho de 2015

MENTIRICES

Entre mim e a utopia sempre há um passo novo, à frente. Por isso persigo as linhas em branco e, sem querer, deixo caminhos que vão se fazendo enquanto escrevo a estrada com minhas pegadas tortas: tenho pés tortos.

Nunca fui de guardar rancores. Arranco todos que posso. Tiro até as funduras da raiz. Nossas interioridades conservam certos excessos que, se ficarem por ali, acabam crescendo e ganhando vida na vida que tira de nós. Tudo neles (nos excessos) são lascas, gorduras cheias de “quero ficar”. Confesso até que, para não engordá-los mais, prefiro inventar outros, substituir para arejar os “debaixo da pele” – sufocá-los não dá, daí morremos. Sim, só sei sentir mentindo. Mentir é uma estratégia para enganar a fome de nossos egos, porque, como disse o poeta, “tudo o que não invento é mentira”.  
A literatura, por exemplo, – sendo muito maior do que eu – é uma mentira bonita e que pode variar de acordo com algumas ‘mentirices’ nossas. São verdades que se multiplicam e se colorem em mil e tantas pequenas criações. Não me refiro apenas ao autor-mentiroso, leitor também mente, lê o que pode e completa com as recordações (se não viveu inventa, ora!). Suas imagens, criadas ou não, são ilusões perfeitamente verdadeiras, existentes. As boas mentiras funcionam assim: quando o mundo exige uma, entregamos todas para não ‘sincerar’ ouvidos que raramente funcionam para fora de seus donos.   
Não, aqui não trato de mentiras vis, não se assustem, mentira que sufoca, coíbe e extorque estão em um nível abaixo do que quero dizer. Quanto a mim, toda a história que invento é a mais pura verdade. Outro dia mesmo, ao passar em frente de uma casa, recordei que ali morava um antigo amigo. Foi por acaso. Mesmo assim, olhei e logo senti sobre os ombros uma cachoeira repleta de imagens – estávamos na primeira série. Embebido naqueles "ontens", subi para respirar. Foi quando a lucidez me encheu de presentes: "Não sabe dele. O amigo não é mais o que anda cheio de barbas aí pelo mundo. Aquele que foste é que sabia daquele que ele foi. Ali é que se conheciam. No mais são estranhos." E o tempo seguiu, deixando pegadas nunca dadas por este que me tornei, mas pelos pés que já não são meus. Segui. Passei por outro caminho e uma nova lembrança começou outra história mentirosa por dentro de mim...
Bom, minhas mentirices não param por aí. Conto a última:
De tanto observar as cores fabricadas pela falta de barulho dos gatos, hoje sonhei com uma onça parda. Ao acordar – eu acho! – fui logo surpreendido pelos sons dos passarinhos, esses compositores de céu: pardais também reconhecem certa afinação para os silêncios. Bem que aquela onça poderia ter asas e bico para ajudar a chamar o amanhecer. Gosto de seres "pardados". Quando durmo sinto que tenho poderes tão mestiços quanto os de Salvador Dali. Será que acordei mesmo?
Ah, sonhar é uma mentira tão boa...


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