Entre mim e a utopia sempre há um passo novo, à
frente. Por isso persigo as linhas em branco e, sem querer, deixo caminhos que
vão se fazendo enquanto escrevo a estrada com minhas pegadas tortas: tenho pés
tortos.
Nunca
fui de guardar rancores. Arranco todos que posso. Tiro até as funduras da raiz.
Nossas interioridades conservam certos excessos que, se ficarem por ali, acabam
crescendo e ganhando vida na vida que tira de nós. Tudo neles (nos excessos) são
lascas, gorduras cheias de “quero ficar”. Confesso até que, para não engordá-los
mais, prefiro inventar outros, substituir para arejar os “debaixo da pele” – sufocá-los
não dá, daí morremos. Sim, só sei sentir mentindo. Mentir é uma estratégia para
enganar a fome de nossos egos, porque, como disse o poeta, “tudo o que não
invento é mentira”.
A
literatura, por exemplo, – sendo muito maior do que eu – é uma mentira bonita e
que pode variar de acordo com algumas ‘mentirices’ nossas. São verdades que se
multiplicam e se colorem em mil e tantas pequenas criações. Não me refiro
apenas ao autor-mentiroso, leitor também mente, lê o que pode e completa com as
recordações (se não viveu inventa, ora!). Suas imagens, criadas ou não, são
ilusões perfeitamente verdadeiras, existentes. As boas mentiras funcionam
assim: quando o mundo exige uma, entregamos todas para não ‘sincerar’ ouvidos
que raramente funcionam para fora de seus donos.
Não,
aqui não trato de mentiras vis, não se assustem, mentira que sufoca, coíbe e extorque
estão em um nível abaixo do que quero dizer. Quanto a mim, toda a história que
invento é a mais pura verdade. Outro dia mesmo, ao passar em frente de uma
casa, recordei que ali morava um antigo amigo. Foi por acaso. Mesmo assim,
olhei e logo senti sobre os ombros uma cachoeira repleta de imagens – estávamos
na primeira série. Embebido naqueles "ontens", subi para respirar.
Foi quando a lucidez me encheu de presentes: "Não sabe dele. O amigo não é
mais o que anda cheio de barbas aí pelo mundo. Aquele que foste é que sabia
daquele que ele foi. Ali é que se conheciam. No mais são estranhos." E o
tempo seguiu, deixando pegadas nunca dadas por este que me tornei, mas pelos
pés que já não são meus. Segui. Passei por outro caminho e uma nova lembrança
começou outra história mentirosa por dentro de mim...
Bom,
minhas mentirices não param por aí. Conto a última:
De
tanto observar as cores fabricadas pela falta de barulho dos gatos, hoje sonhei
com uma onça parda. Ao acordar – eu acho! – fui logo surpreendido pelos sons
dos passarinhos, esses compositores de céu: pardais também reconhecem certa
afinação para os silêncios. Bem que aquela onça poderia ter asas e bico para
ajudar a chamar o amanhecer. Gosto de seres "pardados". Quando durmo
sinto que tenho poderes tão mestiços quanto os de Salvador Dali. Será que
acordei mesmo?
Ah,
sonhar é uma mentira tão boa...
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