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sábado, 30 de maio de 2015

AS MÃES E OS GUAXOS

Sempre me machuco quando leio. Não que as letras representem espinhos perigosos e contundentes. Minhas “machucações” vêm sempre da beleza provocada pelos ritmos e pelas atmosferas inebriantes que alguns gênios literários provocam em mim. As palavras são apenas um meio para chegar ao fim, que é nossa alma. O engraçado é que essa gente utiliza-se de minhas próprias vozes e imagens para se mostrar pelas fendas de cada um de seus silêncios – digo bem, silêncios, há muitos silêncios, sempre me refiro a ele(s) no plural, não estranhem. Medo de parecer tão frágil diante deles. Eles parecem ter a faculdade de tirar coisas de dentro de mim, coisas que nem eu sabia que podiam estar por lá, nas entranhas.
Vejam bem, semana passada li, entre outras coisas, “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Até ontem, ao receber a notícia de que minha encomenda havia chegado à livraria, tive a noção de que nada poderia ultrapassar esta última leitura (confesso!), muito menos esta que me veio agora – ainda que, ao mesmo tempo em que esperava, andava lendo “Guerra e paz”, aquela monumental obra de Tostói (vinho que bebo devagarzinho, claro, a conta gotas para sentir melhor o sabor). Engano meu. À tardinha, pouco antes de regressar ao trabalho, abro o dito livro e, novamente, fui tragado. O primeiro conto era magnífico e tive a impressão de que aquele velho pescador não estava tão solitário assim. Falo da obra “Dançar tango em Porto Alegre”, de Sérgio Faraco. Livro que, já no princípio me pegou bonito por sua essência universal – se é que posso dizer assim. Contudo, cito um trecho para que se embebedem comigo:
“Ele trazia os joelhos de encontro ao peito para se aquecer, pensava na mãe, que as mães não deviam morrer tão cedo, na falta delas todo mundo parecia mais solito, espremido no seu cada qual como rato em guampa.” Nossa! Quanta ternura encontrei nessas palavras. Não sei como puderam tê-las traduzido, como acredito que foram. A verdade é de todos, eu sei, mas me refiro ao refinamento, à forma, ao monumental ritmo oral e nativo: vozearia legitimada de nossos pampas. “Um Guimarães Rosa bem vivo” – pensei. Ousei, e naquela noite arrisquei uma frase que brotou de uma palavra utilizada tanto por Rosa, quanto por Faraco: “Nonada, arma de vivente é fia de muitas morte que fica fazendo casa na gente. Não precisa sabê de letra pra entendê dessas morada. Arma é alma”, guri! – tal como dizia minha avó.”.
Enfim, depois disso e como da outra vez, fiquei na janela tentando me convencer de que aquele conto não era de verdade, que se travava de ficção. Quando retornava para ele, relia algumas partes que, insistentes, voltavam a me dizer: “Voltar para subir o cerrito de pedra nos fundos do campinho, para atirar uma flor na cruz da velha morta, de quem, agora mais do que nunca, sentia tanta saudade.”.
No outro dia (hoje) bem cedinho, “deitei o cabelo” para casa de meus pais. Lá meu velho ostentava uma cuia bem grande de chimarrão. Na varanda, minha mãe, mais viva do que nunca, me saudou com um bom dia. Sim, o escrito de Faraco fez meus olhos se voltarem para dentro e observar o quando eu ainda tinha. Valorizei. Fiquei até às onze horas mateando e ouvindo as vozes de minha velha. Montei campo ali, ouvindo e sofrendo em saber que um dia ela não estará mais conosco. E não, o conto não me ‘autoajudou’. Pelo contrário, serviu de catarse para que eu purificasse a sorte que ainda tenho por não ser um guaxo na vida.
E as mães sempre com esse poder de nos provocar saudades que ainda nem precisamos ter. Os que precisam, chorem ao ler o primeiro conto de “Dançar tango em Porto Alegre”. Permitam-se sofrer junto aos “Dois guaxos” (Mano e Ana), personagens que são quase reais, mas advirto, precisam ser lidos por algum cantinho do coração: aquele que também se permite ser lido.

Estou encantado. 

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