Nunca saberei retribuir o que a sabedoria sabida de uma
mulher analfabeta soube me dar. Tive que ler, e ler muito para entender o que
aqueles olhos queriam me mostrar. Não é nada fácil fazer a leitura dos olhos,
os lábios teimam em se fazer, junto com eles, afinação – precisei me afinar
antes. Fineza tão sóbria que enlouqueceram algumas ideias vagabundas daquele
adolescente que fui: rio que não para.
Maduro e estudado, como diz minha mãe, hoje percebo esta
sentença simples com a profundidade que tem o olho de um furacão. “Estudado!”. Ah,
quanto sabor há nesta palavra! Sim, ela sempre foi a melhor entendedora de mim.
Estudou-me sempre, desde o ventre. Conhece cada cantinho meu, praticou em mim
suas “estudações”, sou sua tese. Estudado...
Eis uma das ‘bonitezas’ de Dona Ana.
Ainda lembro. Há algum tempo, empolgado com um poema de João
Cabral de Melo Neto, resolvi recitá-lo para ela. “O meu nome é Severino/ Não
tenho outro de pia/ Como há muito Severino/ Que é santo de romaria/ Deram então
de me chamar/ Severino de Maria/ (...)”. Chorou. Teve pena da falta de existência
daquele homem. Talvez tenha recordado de si mesma. Devaneou uma história
parecida. Aquelas palavras a despertaram. “Analfabeto sou eu”, pensei, “não
precisa ser doutor em literatura para sentir nos poros uma poesia...”. Lição
que tive: ler com os ouvidos.
Outro dia, abatido, cheguei em casa e escrevi o seguinte
pensamento (exorcizo as coisas assim): “Morrer
é só uma maneira de estar sozinho. ‘Sozinho-me’ morrendo – quem dera que por
gotas e contas loucas de alguns cálculos perdidos na bacia. Sentir pingando é
melhor do que ter uma cachoeira solta dentro da gente. ‘Cachoeirar’ sem rédeas
é uma maldição. Sentir é uma maldição.” Logo em seguida fui até a casa de meus
pais e afirmei: “Mãe, não sei se vou até os cinquenta, sofro de desespero, até
um vento breve me faz ‘infinitar’ certa sensação na pele.” “Ora, o que é isso,
filho? Nunca fale essa palavra novamente. Já vi muitas mortes, mas não entendo
de nenhuma. Morrer é ir morar com a saudade.” E pronto, já estava melhor.
Acho que se algumas pessoas não fossem analfabetas para o
outro, o mundo seria mais legível e menos intolerante. Carregamos tantas
letras, vamos ler! O mundo é como uma biblioteca inteira. Não precisamos nos
resumir. Pergunte a minha mãe.
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