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sábado, 17 de outubro de 2015

OS DONOS DA RUA

O mundo lá de fora acontece diferente dentro de cada um de nós... Tudo está no plural.

A rua é um lugar estranho. Ermitão, hoje ela se tornou quase uma adversária. Desliguei minha vontade de sair ao seu encontro. Do portão para dentro, confesso me sentir bem melhor. Maluquice ou não, o mundo fez de mim este estrangeiro.
Mas houve um tempo em que não era assim, nem eu mesmo era este que agora gasta os dedos escrevendo memórias. Naqueles outros de mim, nos meninos que fui, recordo que gostava do ar fresco. Despreocupado, tudo lá fora era como um enorme brinquedo, pois, contrário ao vai e vem, cresci em um logradouro sem saída. Carros, raro quando nos deparávamos com um. Éramos os donos da rua. Jogávamos taco, brincávamos de esconde-esconde. Quando nos era permitido, olhávamos seriados na casa de um amigo pouco mais abastado (só lá é que tinha televisão em cores). Enfim, havia sempre um motivo especial para começar o dia. Perdi, inclusive, as contas de quantas vezes subi e macaqueei sobre os galhos das árvores, elas também eram nossas.
Saudades! Nos anos oitenta não havia melhor diversão do que encontrar os amigos na esquina. O mundo de fora passava por ali. A bifurcação possibilitava o trânsito, mas só quando queríamos ver. Lembro que uma construção (hoje um mercado) nos abrigava em quase todas as tardinhas. Enquanto bebíamos um refrigerante de garrafa, a rotina dos adultos passava. Os tempos aconteciam diferentes dentro de nós. A vida era uma enorme aventura. Não, a ‘adultez’ ainda não sabia de nós. Bebíamos aquela “Celina” de lamber os beiços e esquecíamos às horas. Entretanto, gritos daqui e outros de lá faziam nos lembrar de que precisávamos voltar cada um para sua casa.
Ah, aquela rua! Nela me apaixonei por uma menina pela primeira vez. Senti também o peso das coisas quando fui obrigado a ganhar o mundo para fora dela. Nela tive infância. Soube o que representava um disputado jogo de ‘bolitas’ e de bafo. Senti a dor de uma chinelada na bunda sempre que fazia uma arte maior. Sim, minha mãe era tão braba que acabou desperdiçando meu potencial para política partidária. Conto: dias desse cheguei em casa me gabando ter furtado o carrinho de um primo. Ela nem pensou. O ‘pito’ pegou, a vara cantou e tive que devolver, aos prantos, a merdinha daquele objeto. Pois então, ‘desbrasileirei’, tanto que o ‘jeitinho’ não me cabe mais.
E hoje a rua ganhou saída. Virou quase avenida e se esvaziou. O que me devolve a ela fica nestas lembranças sangradas por estes dedos velhos que perderam a capacidade de escalar árvores e existir para fora de um livro ou de uma folha branca de papel. 

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