O
mundo lá de fora acontece diferente dentro de cada um de nós... Tudo está no
plural.
A rua é um lugar
estranho. Ermitão, hoje ela se tornou quase uma adversária. Desliguei minha
vontade de sair ao seu encontro. Do portão para dentro, confesso me sentir bem
melhor. Maluquice ou não, o mundo fez de mim este estrangeiro.
Mas houve um tempo em
que não era assim, nem eu mesmo era este que agora gasta os dedos escrevendo
memórias. Naqueles outros de mim, nos meninos que fui, recordo que gostava do
ar fresco. Despreocupado, tudo lá fora era como um enorme brinquedo, pois, contrário
ao vai e vem, cresci em um logradouro sem saída. Carros, raro quando nos
deparávamos com um. Éramos os donos da rua. Jogávamos taco, brincávamos de
esconde-esconde. Quando nos era permitido, olhávamos seriados na casa de um
amigo pouco mais abastado (só lá é que tinha televisão em cores). Enfim, havia
sempre um motivo especial para começar o dia. Perdi, inclusive, as contas de
quantas vezes subi e macaqueei sobre os galhos das árvores, elas também eram
nossas.
Saudades! Nos anos
oitenta não havia melhor diversão do que encontrar os amigos na esquina. O
mundo de fora passava por ali. A bifurcação possibilitava o trânsito, mas só
quando queríamos ver. Lembro que uma construção (hoje um mercado) nos abrigava
em quase todas as tardinhas. Enquanto bebíamos um refrigerante de garrafa, a
rotina dos adultos passava. Os tempos aconteciam diferentes dentro de nós. A
vida era uma enorme aventura. Não, a ‘adultez’ ainda não sabia de nós. Bebíamos
aquela “Celina” de lamber os beiços e esquecíamos às horas. Entretanto, gritos
daqui e outros de lá faziam nos lembrar de que precisávamos voltar cada um para
sua casa.
Ah, aquela rua! Nela me
apaixonei por uma menina pela primeira vez. Senti também o peso das coisas
quando fui obrigado a ganhar o mundo para fora dela. Nela tive infância. Soube
o que representava um disputado jogo de ‘bolitas’ e de bafo. Senti a dor de uma
chinelada na bunda sempre que fazia uma arte maior. Sim, minha mãe era tão
braba que acabou desperdiçando meu potencial para política partidária. Conto: dias
desse cheguei em casa me gabando ter furtado o carrinho de um primo. Ela nem
pensou. O ‘pito’ pegou, a vara cantou e tive que devolver, aos prantos, a
merdinha daquele objeto. Pois então, ‘desbrasileirei’, tanto que o ‘jeitinho’
não me cabe mais.
E hoje a rua ganhou
saída. Virou quase avenida e se esvaziou. O que me devolve a ela fica nestas
lembranças sangradas por estes dedos velhos que perderam a capacidade de
escalar árvores e existir para fora de um livro ou de uma folha branca de
papel.
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