A vida se resumia em
trabalho duro. Todos os dias seu couro era riscado por varadas secas. O
sofrimento acostumou-se em seu lombo. Na canga tinha existência cativa e
dolorida. Quando zumbia no ar a vara fina, sabia que logo atrás vinha o impacto
da dor, precisava andar. A dureza lhe
fez entender à rotina do campo: APANHAR, puxar arados, APANHAR, puxar carroças
e APANHAR no final do dia, carregando um enorme ípsilon de madeira sobre o
pescoço, isso para não cruzar a cerca.
Jovem, sua força era
descomunal. Como então permitia que lhe castigassem tanto? O que havia de
errado naquele animal? Não era ele, meus amigos! Para o velho senhor, seu dono,
o bicho não merecia respeito. “Ele não tem alma!” – repetida gargalhando ao
sacudir o relho – “Matuto não sente. Besta não sente, compadre!”
Mas um dia o boi ficou
velho. Mal podia se mover. E já que perdeu a serventia, decidiram então matá-lo.
Puxaram-lhe firme. Levou o dobro da surra que de costume, estava difícil
levantar. Assustado das bancadas, mugindo, como quem pede calma, ficou de pé,
ganhou forças e movimentou-se até o destino. O rodopiar do esmeril de pedras,
espichou uma língua de fogo em seu focinho. A adaga parecia já amolada. Dois
homens, um segurou o pescoço e o outro, de um golpe só, estocou a facada. Pobre
bicho. Não entendeu a mensagem. Com a boca engolfada de sangue, se moveu. A
violência era tão frequente, que mal sabia a diferença entre varada, chicotada
ou grito. Aquela dor era nova. O resto de suas forças levou-o ao “todo o dia”. O
golpe o fez caminhar mais uns metros, entendeu que precisava. Ajoelhou-se à
frente da canga e tombou o pescoço à espera de mais um risco no lombo. Não
veio. O boi velho ficou, e ali dormiu assustado – havia descansado pela
primeira vez: estava morto.
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Recriei, a meu modo, um
dos contos mais tristes e impactantes que já li em toda a Literatura Brasileira.
Ele está em “Contos gauchescos”, de Simões Lopes Neto; o título, “Boi velho”. A
cena final me deixou absorto por dias. Cumpriu seu papel de inquietar. Então
achei prudente escrever este texto, pois entendi assim as imagens. Entretanto,
claro, sugiro que o leitor procure o original. Incomparável o escrito. Cometi
este plágio de propósito, tudo para te fazer chegar nele, no Simões. Sua fonte é
primeira, limpa e te trará (espero) alguma purificação, alguma catarse. Seu
toque é de universalidade, portanto, não há como não ser sentido aqui ou em qualquer
outro tempo e lugar. Contudo, é preciso lê-lo.
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