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quarta-feira, 30 de março de 2016

O HOMEM DE LATA

Enquanto preparava algumas aulas de língua portuguesa, algo me ocorreu no exato momento em que decidi buscar um pouco de ar puro. Fui até a frente de casa, respirei um pouco e percebi o passado desenferrujando na rua: era um menino andando de bicicleta. Acho que brincava de motociclista, já que produzia com a boca os sons que costumam fazer os motores. Imediatamente entrei. Revirei minhas coisas e abri um livro, a “Gramática expositiva do chão”, do poeta Manoel de Barros. Ao acaso, parei na seguinte estrofe de um dos poemas: “O homem de lata/ está todo estragado/ de borboletas.” Verdade, naquele momento eu estava mesmo inutilizado por elas e pelo o que aquela criança de bicicleta me fez recordar. Em meu tempo cortávamos tampas de potes de margarina e as prendíamos perto das rodas para produzirem os mesmos sons que o rapazinho ali da rua passou sonhando pela boca. Elas (as tampas) borboleteavam para longe, lonjuras que só uma criança é capaz de chegar através da música que os raios das rodas produziam naqueles motores inventados.
Mas voltei ao trabalho e tudo clareou. O homem de lata, o gramatiqueiro professor de português, imediatamente chispou para longe as borboletas. A metalurgia daquele atual espírito precisava se concentrar em coisas mais ‘sérias’, tal como a estrutura gramatical das frases. E não, não podia gastar mais tempo com absurdos de um poema que só me fez perder o foco. Quem quer saber sobre meninos que sonhavam demais? Homens de latas não interessavam no momento. Não sou um. O único que conheci esteve no “Mágico de Oz”, ele, até onde eu me lembro, buscava um coração de verdade. Só que preciso desenferrujar e voltar ao trabalho. Está aí. Para não perder o momento, aproveito. Boa frase para uma análise morfossintática. Vou utilizar:
(Atenção: minhas borboletas sugerem que tu pules o próximo parágrafo).
“O menino sonhava muito.” Vejamos! Aqui temos uma oração absoluta ou período simples – isso por apresentar apenas um verbo em sua estrutura. “O”, é o adjunto adnominal do núcleo do sujeito (menino). “Sonhava”, verbo intransitivo direto acompanhado por um adjunto adverbial, a palavra “muito”. Pois bem, horizontalmente é isso (chamam também de sintagma, ou análise sintática – como queira). Chata esta verificação? Ah! Mas não acabou. Observem agora na vertical, na paradigmática (morfológica): “O”, artigo definido. “Menino”, substantivo simples. “Sonhava”, verbo no pretérito imperfeito do indicativo, ele está na terceira pessoa do singular.
Parei e perguntei a este meu lado metálico: “Mas senhor homem de lata, e o menino?” “Que menino? Ah, o sujeito da oração?!” “Não.” – respondi – “O menino que éramos e que sonhava naquele motorzinho de borboletas cheio de imaginação. Aquele que tinha coração! Lembrou?” “Não.” 

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